Fichamento,

Maria Esther Maciel

Em novo romance, a escritora e pesquisadora mineira aborda o lado escuro da maternidade

01jan2024

Essa coisa viva (Todavia), escrito após “paralisia criativa” da autora, encara o tema tabu da violência de mãe contra filha e o sofrimento de uma narradora ambígua.


Essa coisa viva, de Maria Esther Maciel

Essa coisa viva não é autoficção, mas há muitos elementos autobiográficos na história. Você quis jogar com esse embaralhamento?
Existe essa brincadeira. Este romance faz parte de um projeto iniciado com O livro de Zenóbia [Lamparina, 2004]. Depois, veio O livro dos nomes [Companhia das Letras, 2008]. Essa coisa viva teria o título de “O livro das coisas” no projeto inicial. Mas, em 2012, eu tive um avc com uma série de complicações que me obrigaram a suspender meus projetos literários. Logo depois, meu marido morreu. Foi um período tumultuado, tive uma paralisia criativa. Na pandemia, retomei os projetos deixados no meio do caminho. Neste livro, era para eu seguir a estrutura fragmentária de O livro dos nomes, mas optei por uma narrativa com fluxo temporal, mesmo que não linear, que começa em forma de carta. Quando terminei de escrever, achei melhor mudar o título. As “coisas” estão presentes, mas há aqui uma história de ordem mais familiar e com uma carga emocional muito forte, a “coisa” ficou viva.

O que levou a essa mudança?
Minha ideia era desenvolver em livros avulsos as histórias de alguns personagens do Livro dos nomes, neste caso a vida de Lídia. Seria a história de uma suicida, a partir de uma carta que ela deixou. Depois da experiência que eu tive com o avc, em que fui até desenganada pelos médicos, não quis mais escrever sobre uma mulher que se mata. Mas queria escrever sobre conflitos de mãe e filha.

Como foi falar dessa maternidade tóxica?
Sofri muito para escrever essa história. Quando estava na faculdade, uma colega me contou de uma experiência muito traumática de sua relação com a mãe que me impressionou muito. Essa colega abandonou o curso, não a vi mais, mas o assunto ficou na minha cabeça. Para o romance, fiz algumas pesquisas sobre casos de violência de mãe contra filha e até pedi ajuda de alguns psicanalistas. Descobri que isso sempre foi um tabu, quase ninguém fez estudos sobre essas questões.

O que foi mais difícil nessa escrita?
Lidar com o caráter paradoxal das personagens: a mãe, a filha, o pai. Queria personagens que fossem contraditórios. A filha narradora não tem certeza de muitas coisas e tem um sentimento de culpa bem grande, é muito oscilante, ambígua. Assumir essa persona da narradora não foi fácil. O desafio, como o de todo escritor, principalmente em narrativas em primeira pessoa, é se converter naquela personagem por meio do sofrimento ficcional, fingir que aquilo está se passando dentro de mim.

Desconstruir a maternidade idealizada é sempre um risco, mas acha que continua sendo um tabu?
Cheguei a me achar ousada demais por escrever sobre isso num momento em que as fronteiras entre ficção e realidade andam tão tênues. Existe um conceito de mãe muito idealizado e qualquer coisa que desestabilize essa figura é quase uma profanação. Algumas escritoras contemporâneas têm discutido a maternidade sob diversas perspectivas. Talvez meu livro acabe entrando nesse registro, mas com outro viés. A violência doméstica é geralmente atribuída ao pai: é ele que abusa da filha, bate na mulher. Em Essa coisa viva não é assim, há uma inversão. Por outro lado, há figuras na história que têm uma função materna positiva, duas tias. A narradora tem apoio de mães postiças, mas o central é sua relação com a mãe, essa coisa viva que fica latejando o tempo todo.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)