Arte, Literatura em língua francesa,

O processo criativo de Peter Uka

Artista nigeriano fala de sua obra que ilustra a capa de ‘Cartas a uma negra’ e da identidade negra no mundo contemporâneo

09jun2021 | Edição #46

Em A fonte da autoestima (Companhia das Letras, 2019), Toni Morrison trata do processo de criação de suas narrativas autobiográficas. Para trabalhar as suas memórias, a escritora se preocupa em evitar a realidade pura e simples. Pode parecer incoerente, mas faz todo o sentido na medida em que a escrita da memória é resultado não do vivido tal qual ocorrera, mas da experiência reconstruída. Para Morrison, o juntar os pedaços é que compõe a massa que dá liga às narrativas autobiográficas, quer sejam literárias, quer sejam visuais, e depende do tempero subjetivo de cada pessoa. 

É assim também para o artista nigeriano Peter Uka. Seu trabalho resulta da intenção de transmitir, assim como Morrison definiu, “uma galáxia de sentimentos e impressões” de experiências passadas e não o que de fato pode ter ou não acontecido. Uka nasceu nos anos 1970 na região de Benue, Nigéria, terra que abriga diversidade de etnias e línguas, e mudou-se para Colônia, na Alemanha, nos anos 2000. Seu trabalho transpõe para telas uma diversidade de lembranças, cujas emoções emergem em paletas de cores enérgicas e vibrantes. As imagens evidenciam homens e mulheres que protagonizam cenas cotidianas da vida na Nigéria das lembranças de Uka, ouvindo música, conversando, dançando num baile ou trançando os cabelos.
 


Front yard things, de Peter Uka. Óleo em tela, 2020. [Galeria Mariane Ibrahim]

Numa dessas imagens, uma moça negra vestida de branco se posta em frente à casa aberta, por onde enxergamos a privacidade da sala e do quarto. A partir dessa tela, Uka estabeleceu uma até então inesperada ligação com o Brasil: a imagem virou capa da primeira versão em português brasileiro de Cartas a uma negra, livro da autora franco-martinicana Françoise Ega composto por cartas endereçadas a Carolina Maria de Jesus, recém-lançado pela Todavia. A responsável pela escolha da imagem foi a designer gráfica francesa radicada no Brasil Violaine Cadinot.

Assim, Uka se inscreve como parte da correspondência transatlântica que une Françoise Ega e Carolina Maria de Jesus e soma-se ao movimento que teve início num passado distante e que remonta à diáspora negra. Reunidos pela arte, escritoras e pintor filiam-se à tradição apontada por Jacques Derrida, em que a memória tem papel fundamental no processo da transmissão de legados e em que o sujeito só se pode conhecer através do encontro com a alteridade. Em entrevista à Quatro Cinco Um, Peter Uka fala sobre seu processo específico de reconstrução da memória, a identidade negra no mundo contemporâneo e a imagem da capa de Cartas a uma negra.

Você saiu da Nigéria por volta dos trinta anos, então passou sua infância e juventude lá, certo?
Sim, eu nasci em 1º de maio de 1975, no estado de Benue, numa cidade chamada Otukpo, no meio do país. Mudei da minha vila quando eu tinha dezesseis anos. Alguns anos depois, fui parar em Lagos [capital da Nigéria]. As lembranças que tenho são daquela época. Se eu tiver a oportunidade de reencontrar pessoas daquele tempo, elas certamente terão envelhecido muitos anos. Graças à tecnologia de hoje, pude reencontrar algumas pela internet, mas há um enorme descompasso entre a memória que tenho delas e o que elas são hoje.

A Nigéria é um país muito rico linguisticamente. Imagino que, além de inglês, você fale outras línguas.
Sim, falo minha língua materna, chamada Idoma. Acho que 90% dos brasileiros de origem africana descendem predominantemente dos Iorubás. Eu venho do povo Idoma. Na Nigéria falamos aproximadamente 520 línguas, as três maiores são Hausa, Iorubá e Igbo. Essas línguas todas podem se influenciar, há palavras parecidas em línguas diferentes, e há também muitas que são orais, outras tonais. Por causa de todas essas diferenças, foi difícil para os colonizadores se fazerem entender, então tiveram que forçar o uso da língua deles, e por isso acabamos falando inglês como língua oficial, como vocês falam o português. 

Como vocês lidam com todas essas diferenças entre povos que ocupam um mesmo país e que aprendem uma língua oficial, o inglês, nas escolas, a despeito das línguas maternas?
Isso tem a ver diretamente com o que eu faço. É preciso se encontrar no meio de tudo isso, é preciso ter consciência de que uma cultura nos foi imposta. E, independentemente de como você reage a isso, é como se quisessem enfiar um pino quadrado num buraco redondo. Por isso, consciente ou subconscientemente, a maioria dos africanos está em conflito consigo mesmo. Isso também se resume a onde eu me encontro hoje, é preciso questionar se essa religião ou essa cultura que estão sendo impostas são para você ou não. É preciso se encontrar e se identificar e, por fim, saber quem você é.

À medida que navegamos por esse ângulo, percebemos que, sim, estamos adotando certas coisas da cultura ocidental, mas, por mais que as adotemos, ainda tentamos manter nossa dignidade. E sempre existe essa crença de que “Ah, nos anos 1970, os africanos eram incivilizados. Eles não sabiam de nada, eles eram uns coitados”. Bem, eu sou filho dos anos 1970. E posso olhar para trás, para minha família, minha língua, meus hábitos, fotos de alguns dos meus tios, dos anos 1920, 1930, 1900, e eu percebo que aquelas pessoas estão bem, não tem nada de errado com elas, são homens cultos e tudo mais. 

E assim, em todo esse processo, essas coisas representam uma grande questão em minha vida. Em primeiro lugar, se você não se conhece, não pode realmente fazer algo autêntico. Depende de você encontrar a si mesmo. E eu acredito que não se trata apenas de mim, percebi que a maioria dos artistas africanos ou afrodescendentes da atualidade, está às voltas com esses processos identitários, tentando descobrir quem somos, de modo inconsciente ou consciente fazemos isso.
 


Quiet Listening, de Peter Uka. 2020. [Galeria Mariane Ibrahim]

Dentro desse quadro identitário complexo que você descreveu, de busca de identidade, qual o impacto na sua vida de morar na Alemanha? Como você foi parar aí?
Eu vim para cá mais ou menos em razão do acaso. Originalmente, eu queria ir para a Inglaterra fazer uma pós-graduação mais prática, de estúdio, porque nunca fui um grande fã de educação acadêmica. Mas, ao longo do caminho, participei de um workshop e tive a sorte de ganhar um prêmio, que era vir para uma exposição na Alemanha. Pude entrar em contato com a cena artística alemã e ver como era ao vivo. E fui apresentado ao que entendo como uma arte livre, que permite que eu me expresse sem limites, que eu toque todos os aspectos, que eu me liberte de todas as regras e regulamentos do que conhecemos e estudamos e do conhecimento acadêmico, puramente rígido. Foi muito interessante, acabei estudando aqui, e vou ser sincero, não teria feito de outra forma. Tive muita sorte.

Você desenvolveu a arte que mais te representa, uma que se reporta ao período em que estava na Nigéria, na Alemanha. Como é o seu processo de reelaboração de memórias?
Sempre soube que poderia me expressar melhor com desenhos, tentando capturar uma emoção e criando um momento, como uma espécie de cápsula do tempo. Eu queria que as pessoas se identificassem com as minhas imagens. Funciona assim. É repentino, as coisas são tiradas da minha cabeça, de lembranças, eu simplesmente construo a partir daí. E então tento colocar um rosto ou um gesto. Por exemplo, se eu quiser um movimento de mão em particular, peço a um modelo ou uso a minha própria mão contra o espelho para fazer o movimento para que eu possa capturar aquele momento, vê-lo. Faço isso com frequência, é assim que crio minhas imagens. 

Entre tudo isso, 10% a 15% do meu trabalho ainda depende de fotografias que coletei ao longo do tempo. E às vezes tenho uma ideia, uma formação na minha cabeça em que não consigo montar a imagem e vou fazendo uma composição, construindo as peças da imagem. Acredito que uma pintura deve ser independente de qualquer referência usada. É apenas um ponto de partida. Mas, à medida que avança, deixo que a pintura também tenha vida própria. Para que ela se torne o que pode ser. E não deve ser da maneira exata que uma forma deveria ser, porque é a pintura.

A tela Front yard things foi usada na capa de Cartas a uma negra, de Françoise Ega. Você leu o livro?
Ainda não, não leio em português ou francês, eu apenas ouvi falar da autora. O pessoal da editora entrou em contato comigo, me disseram que adoravam o meu trabalho, que seria perfeito para essa história e eu me animei. Então percebi que a autora falava de coisas que tinham a ver comigo, que tinham a ver com minha história. Percebi que o enredo se relacionava com o meu trabalho, como se os cenários que eu pinto estivessem em outro formato. Busco trabalhar de maneira que as pessoas possam se reconhecer naquelas cenas, que possam se identificar com as experiências retratadas, independente da sua cultura, que tem a ver com o clichê da experiência da existência humana.

Muitas figuras que compõem as suas telas são referências do seu passado, tias, primos, conhecidos, gente que passou pela sua vida. A moça que está na capa de Cartas a uma negra também surge em outros trabalhos. Parece que ela guarda certa relevância para você.
A forma como criei esse rosto é baseada no rosto da minha mãe. Ela ainda está viva e mora na vila onde nasci. Eu só preciso de alguns pedaços do que me lembro dela dos anos 80. Tenho também uma foto dela de quando ela era adolescente. E então eu construí a figura feminina a partir dessa ideia.

O branco e preto compõem a personagem central da tela e o portão atrás dela. Você pode explicar um pouco como criou essa personagem e o portão em relação ao uso das cores? 
Eu uso um tom bem escuro, marrom bem escuro para a nossa cor de pele. E a memória não me falha em relação à cor branca também. Eu me lembro muito claramente que, naquela época, tínhamos alguns primos e tias que trabalhavam em hospitais e vinham a nossa casa quando tínhamos febre ou algo assim. A pessoa se vestia com uma roupa super branca e muito limpa. Isso se destacava, e eu queria que se destacasse na minha tela também.

Há outros temas que gostaria de abordar num futuro próximo que têm a ver com coisas assim, para as quais quando eu era criança não ligava muito, mas que agora, como adulto, me chamam a atenção, me despertam. Há certas vivências que vêm desempenhar um papel enquanto eu ando por esse caminho, pessoas que vêm à minha mente, que habitaram meu passado e vêm me visitar. E essas são coisas que surgem assim, por acaso, na minha cabeça. Tudo começa com uma pequena lembrança que gradualmente se transforma nesses objetos.

Muitos comerciantes franceses circularam pela Nigéria na época do tráfico de pessoas para trabalho escravo. O portão é uma referência à arquitetura dessa época? E a janela ao fundo da imagem?
Muitas dessas referências em construção tiramos dos colonizadores, mas as varandas na frente das casas têm a ver com o hábito de construir barreiras baixas para impedir animais de entrarem nas casas e de saírem para as ruas. 

Na Nigéria, a gente abria a porta da frente e a porta de trás da casa, que eram construídas paralelamente, em oposição direta, para criar uma ventilação. Ou se colocava uma janela no fundo, e eu pensei nisso e coloquei a janela lá. Gosto de criar uma imagem dentro da imagem, com uma janela, com um quadro.

Na Europa as casas são grudadas para manter o calor, nos trópicos, nós precisamos nos separar para evitar o calor. Agora, estamos nos orientando à maneira europeia, sem respeitar nosso ambiente, e nossas cidades estão ficando mais quentes. Isso é o que quero dizer quando falo que estamos querendo encaixar um pino quadrado dentro de um buraco redondo, querer enfiar uma cultura alheia dentro do nosso meio.
 


Peter Uka, Vibe, 2021 [Galeria Mariane Ibrahim]

Quais foram algumas das suas influências?
O artista que mais me influenciou foi o Kerry James Marshall, um artista afro-americano. Foi um ponto de virada conhecer o trabalho dele, porque eu nunca tinha visto um artista negro fazer o que ele faz, pintar o negro sem dar satisfação a ninguém. Eu não me sentia confiante o suficiente para fazer o que eu queria fazer antes disso, e ele realmente me motivou. Eu estava muito preso ao conhecimento acadêmico antes de conhecer o trabalho dele.

Você acha que foi importante o aprendizado acadêmico para poder se sentir confiante em subvertê-lo?
Foi muito importante, porque me deu insights, ampliou meu conhecimento antes de eu poder me afastar dele. Agora estou passando pelo processo de “desconhecer”, de deixar muita coisa para trás, de decidir o que eu quero ou não fazer, mas de uma maneira consciente e crítica. Ainda não estou onde eu quero estar, talvez demore um pouco para chegar lá.

Como está se dando esse processo de “desaprendizagem”?
Quando passo muito tempo num quadro, acabo tornando-o super realista, e não gosto do resultado. Aí eu destruo a tela inteira, porque não me representa mais. Para mim, a pintura é mais sobre a emoção veiculada do que sobre a habilidade de desenhar ou pintar.

Quem escreveu esse texto

Maria-Clara Machado Campello

É doutoranda em Estudos Lusófonos pela Sorbonne Nouvelle e em literatura brasileira pela Universidade de Brasilia.

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.