Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Ensinar literatura

Em 'The Holdovers' eis quem sabe o melhor Giamatti, noutro papel pensado em referência ao pai

01mar2024

De abril a agosto de 1989, Bart Giamatti, fundador do curso de “Grandes obras” (Great books) de Yale, foi o comissário da liga profissional de baseball. Notabilizou-se pela cruzada contra o lendário Pete Rose (estrela dos Cincinnati Reds). Desmascarou um escândalo em torno do envolvimento de Rose em apostas e baniu-o inapelavelmente do baseball e do Hall of Fame. Dias depois, morreu. Deixou uma viúva e três filhos. Paul, então com 22 anos, viria a tornar-se um dos maiores actores vivos.

Entre esta cruzada de Angelo Bartlett “Bart” Giamatti, professor de literatura inglesa, e a de Charles “Chuck” Rhoades, Jr., em Billions (um contraditório procurador apostado em derrubar falsos ídolos da elite financeira), as semelhanças são dignas de nota, num papel para o qual a relação de Chuck com o pai é motivo de conflito. Embora seja penoso ver um actor da magnitude de Giamatti arrastar-se como por obrigação contratual nas últimas temporadas da série, vejo através das suas contradições o fantasma de Bart Giamatti — e vejo (ou projecto) nesse fantasma uma ideia de universidade, que me formou, ou antes, que me deformou. A de que a universidade serve para ser defendida contra impostores.

Em The Holdovers, de Alexander Payne, eis quem sabe o melhor Giamatti de sempre, noutro papel pensado em referência ao pai. O de um professor de estudos clássicos, não eminente, mas traído pela carreira, um homem áspero, vesgo, fétido, desprezado por todos, numa escola fictícia num lugar que se assemelha com New Haven. (Tal como Giamatti-filho, David Hemingson, que escreveu The Holdovers em parte a partir da própria experiência num colégio interno, bacharelou-se em Yale na época do Giamatti-pai.) E de novo através daquela figura triste e derrotada vejo o fantasma deste pai, se estivesse vivo e emérito, numa cruzada vã. Seria a encarnação estrábica dos estudos literários, reduzidos à dimensão dos estudos clássicos, em parte por responsabilidade própria, em parte porque o mundo mudou e a universidade tinha que mudar, por muito que um sem-número de pessoas pareça ressentir essa mudança.

Ao agradecer o Globo de Ouro, o actor abriu com uma tirada que me fez rir e me arrepiou

Ao agradecer o Globo de Ouro por este papel, Giamatti abriu com uma tirada que me fez rir e me arrepiou. “É decerto a primeira vez que este prémio é atribuído a um actor que faz o papel de um homem que cheira a peixe”, rematando com uma dicção irónica nasalada: “Thank you, Golden Globes.” Arrepiou-me porque me desiludiu. Como as primeiras vezes em que vemos os nossos professores e a universidade pelo que são. Gostaria de poder explicar isto aos meus alunos sem cair no ridículo.

Gostaria de lhes explicar o que já não precisam de saber e que não lhes é ensinável sem dolo. Falo aqui como alguém que ocupou aquele lado da mesa entre o final dos anos 1990 e o dos anos 2000, alguém ensinado a ser tardio; a empenhar-se em ideias na sua fase agónica; a proteger-se contra impostores e lisonjas; sem lhe fazerem ver, todavia, — e como poderia ser de outra forma? — tudo e todos que a perpetuação da universidade esquece e esmaga. Como expressar a minha dívida sem soar azedo e insincero? Sem feder a peixe? Como mostrar aos meus alunos do presente a grandeza, não da teoria em si, não dos estudos, antes, da literatura, da literatura enquanto literatura?

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Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo