Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Os arquitetos e o povo

José Henrique Bortoluci analisa os caminhos de profissionais da arquitetura paulista para se conectar com a maioria da população

01mar2024

De todas as artes, a arquitetura talvez seja a primeira a nos ser apresentada. A casa em que nascemos e crescemos, a divisão entre os cômodos, se as paredes são de alvenaria, madeira ou lona, se percebemos a cozinha como grande ou pequena; as proporções entre os espaços construídos e livres conformam, ainda que muitas vezes de maneira não explícita, nossas lentes para olhar o mundo. A maneira como nos relacionamos com construções é perpassada tanto pelo conjunto de intencionalidades de quem as construiu como por nossa capacidade de conferir sentido ao que integra a nossa experiência.


Arquiteturas políticas, de José Henrique Bortoluci, explora a formação do campo da arquitetura em São Paulo a partir de 1950

Em Arquiteturas políticas, livro derivado da tese de doutorado em sociologia de José Henrique Bortoluci — mais conhecido pelo premiado O que é meu (Fósforo, 2023), em que retrata a vida do pai, caminhoneiro —, a pergunta de fundo é justamente como o ambiente construído se torna dotado de significado. Um prédio não é apenas um objeto material, é também signo — que vai além do que é dito sobre ele. O que tem materialidade tem história e um ciclo de vida, com projeto, execução e uso, abarcando diferentes agentes produtores de colunas e vigas, assim como signos que ultrapassam o terreno exclusivo de suas subjetividades singulares. A questão é trabalhada em um plano teórico aprofundado a partir do conceito de campo, de Pierre Bourdieu, combinado com a perspectiva da formação de signos de Charles Peirce, mas a proposta é, metafórica e literalmente, descer ao chão.

Paredes de concreto não são apenas paredes de concreto. Um dos principais signos da arquitetura brutalista paulistana, o concreto aparente está muito além do que poderia ser classificado como uma simples preferência estética, mas como um qualificador do moderno, como explica Bortoluci:

Nesse processo, a introdução do concreto como material moderno primordial na construção civil foi tanto uma resposta à moda internacional, como um recurso no processo de separação entre projeto e execução da obra, adicionando mais um passo na desqualificação dos tradicionais profissionais da área. O concreto foi introduzido no Brasil como um material “científico”, que deveria ser manipulado de acordo com especificações rígidas, em que somente engenheiros e arquitetos eram especialistas.

Mas o moderno não veio sem estar completamente amalgamado ao atraso. Para além de um material, o concreto é um processo construtivo que, no Brasil, começou a ser aplicado com métodos de escassa tecnologia, em canteiros em que reinavam os baixos salários dos trabalhadores. O processo de simbolização de algo aparentemente tão simples como o concreto não pode ser separado da história e de suas formas de produção, e é aqui que reside o fio condutor do livro: os significados atribuídos a construções são profundamente políticos.

Projeto de nação

Aqui, “política” ganha alguns contornos específicos. Por um lado, o livro explora a formação do campo da arquitetura em São Paulo a partir de 1950 para mostrar como as práticas arquitetônicas desse período procuravam insistentemente separar o desenho da construção — o que vai desde as maneiras de conceber o trabalho intelectual e criativo até a introdução dos materiais. Por outro, há também a perspectiva de uma tradução de repertórios políticos de uma tradição de esquerda para o plano do construído. Arquitetos modernistas como Vilanova Artigas, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha se movimentavam para construir casas e edificações que simbolizassem um projeto de nação.


Conjunto Habitacional Parque CECAP — Projeto de Vilanova Artigas, em Guarulhos [Arquivo histórico municipal de Guarulhos/Reprodução]

Mas entre “nação” e “povo” não há apenas diferenças conceituais substantivas, há separações políticas. Na periodização de Arquiteturas políticas, o campo da arquitetura em São Paulo é formado a partir de um profundo divórcio entre os arquitetos e o povo, não só pela separação entre desenho e canteiro, como também por inicialmente dar as costas para as periferias autoconstruídas. Não é como se uma ideia de habitação popular estivesse simplesmente ausente, mas o diagnóstico, reconstruído a partir das principais revistas de arquitetura da época, apontava para o caráter ainda artesanal da construção civil, impedindo produções em escala para também incluir o povo no projeto de nação.

Uma arquitetura que se pretenda popular está amparada em uma ideia do que é o povo

O desinteresse inicial pela acessibilidade da moradia tem um ponto de virada com a presidência de João Goulart, no início da década de 60. Profissionais da arquitetura seguiram dois caminhos para estabelecer conexões com a maioria da população. Primeiro, por meio do desenvolvimento da construção civil, com estruturas pré-fabricadas e técnicas construtivas que possibilitaram desenvolver grandes conjuntos habitacionais. Segundo, com uma arquitetura vista sob o ponto de vista do canteiro, uma guinada muito marcada pelas perspectivas de Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre — e que somente se deu mais tarde, a partir da década de 70.

Arquiteturas políticas nos mostra que a produção simbólica do construído está longe de ser um aspecto menor. É uma teia complexa de elaboração de sentidos, que abrange desde a composição do nosso gosto até o que entendemos por modernidade. Ainda mais importante, a arquitetura articula comunidades políticas. Uma arquitetura que se pretenda popular está amparada em uma ideia do que é o povo, que pode ser uma quantificação abstrata consolidada na ideia de déficit habitacional ou a construção conjunta do desenho e do canteiro com moradores que deixam de ser apenas destinatários finais de uma casa pensada sem eles. Mas mesmo uma arquitetura não engajada também articula coletividades políticas, na medida em que projeta alguns e exclui tantos outros.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).