Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Deus e o diabo na terra dos prédios

Romance futurista de N. K. Jemisin ressalta os conflitos que dilaceram o tecido urbano, mas apresenta um tratamento um tanto maniqueísta dos problemas

01dez2021 | Edição #52

“É sempre difícil para Paulo saber aonde está indo quando está em outra cidade. Quando criança — quando era só ele mesmo, um rato de favela ágil e de dentes afiados, bem antes de se tornar mais de doze milhões de pessoas —, ele tinha um senso de direção excepcional, que lhe permitia dizer que direção era leste ou sul apenas dando uma olhada para o sol. Ele conseguia fazer isso mesmo em lugares desconhecidos, mas a habilidade desapareceu quando se tornou uma cidade. Agora ele é São Paulo, e seus pés são configurados para ruas diferentes. Sua pele anseia por diferentes brisas e diferentes ângulos de luz.”

Não é incomum associarmos cidades a determinadas personalidades. Se não nos parece estranho dizer que uma cidade grande é agitada, barulhenta, frenética, combativa, belicosa e intensa, grande parte desses traços é deslocada do plano das características humanas para o espaço urbano. N. K. Jemisin, vencedora do prêmio Hugo por três vezes seguidas e uma das principais vozes da literatura fantástica, leva essa ideia às últimas consequências em seu novo livro, Nós somos a cidade. Como seria um mundo no qual cidades pudessem ser corporificadas em pessoas? Como imaginar uma pessoa que pensa, enxerga, sente e sofre como uma cidade? Paulo, um homem negro que representa São Paulo, tem seus pés configurados para as ruas que ele próprio encarna, perdendo o senso de direção em Nova York.

Acompanhamos Paulo em uma missão para evitar que Nova York, recém-nascida (isto é, recém-encarnada em um morador negro em situação de rua que picha muros e paredes), seja alvo do Inimigo. Nova York sucumbe já no prólogo, mas o ataque não é fatal e projeta a alma da cidade em seus distritos: Manhattan, Brooklyn, Bronx, Queens e Staten Island encarnam em diferentes avatares. Manhattan é representada por Manny, um estudante negro que acaba de chegar à cidade para uma pós-graduação. Seus passos guiam a narrativa e apresentam Nova York a quem, tal como ele, não a conhece. Brooklyn é uma antiga cantora de rap que se torna vereadora após se formar em direito; Bronca representa o Bronx, de origem indígena e diretora de um centro de arte que abriga artistas refugiados; Queens é Padmini, uma estudante indiana de engenharia financeira; já Staten Island é Aislyn, uma mulher branca que vê a cidade como expressão do perigo e que ainda vive com a mãe e o pai, um policial agressivo e machista. Enquanto Manny, Brooklyn, Bronca e Padmini entendem que precisam se unir para que a cidade não morra, Aislyn marca a dissidência, mostrando que Nova York está longe de ser homogênea.

O Inimigo também assume diferentes formas. Em diversas passagens do livro é uma mulher branca vestida de branco que desafia e ataca os avatares enquanto busca ganhar o coração de Aislyn. O Inimigo também é difuso, representado por gavinhas e tentáculos que se multiplicam pelo chão e pelas paredes, invisíveis aos olhos das pessoas comuns. Há referências expressas e veladas ao universo de H. P. Lovecraft. A Mulher de Branco se apresenta como R’lyeh, a ilha fictícia criada pelo autor em O chamado de Cthulhu. Ela representa não só a branquitude, mas também o poder econômico e a gentrificação, a descaracterização das cidades em sua autenticidade e como lugar que abriga uma pluralidade de projetos de vida.

Bem contra o mal

Esse mundo de bem contra o mal (ou de oprimidos contra opressores, em que raça, classe, gênero, sexualidade e idade vêm para o centro da cena) é formado por múltiplos universos, em que cidades são pontos de estabilização, mas também de tensão: “Bronca posiciona suas mãos, ambas retas e esticadas no ar, uma sobre a outra. Em seguida ela as movimenta sobrepondo uma à outra, transmitindo a ideia de várias camadas. Como um mil-folhas de mundos, ela tenta sugerir, um se construindo a partir do outro, formando colunas de coral que crescem e se dividem e se distanciam e se dividem de novo. Uma árvore germinada a partir de uma única sementinha, que cresce de maneira infindável com galhos tão violentamente diferentes que a vida em alguns seria irreconhecível para a vida em outros. Com uma importante exceção. As cidades atravessam as camadas”.

Ainda que a construção dos avatares seja rica e multifacetada, há um maniqueísmo de fundo que atrapalha a estrutura do livro. No limite, a mensagem é que pessoas comuns conseguem superar suas diferenças para salvar a cidade — lugar de cooperação, democracia e diferença — quando ela é atacada pelo que há de mais cruel no capitalismo. “Uma cidade nunca está realmente sozinha, não por completo. É como uma família: várias partes, muita confusão… mas, no fim, diante dos inimigos, eles se unem e protegem uns aos outros. Eles precisam fazer isso, ou morrem.”

A construção do personagem São Paulo também é problemática. Ele precisa carregar um maço de cigarros por estar habituado ao ar poluído (como se Nova York fosse diferente); é confundido pelos demais personagens com uma cidade africana ou indiana, um chega a perguntar se favela é uma comida mexicana; se recupera de um ataque com brigadeiros, “um tipo de doce brasileiro, tipo, ah, tipo trufas. Meu pai é português, não brasileiro, mas comemos isso também”.

Ao final, Paulo diz: “Cidades vivas não são definidas por questões políticas — diz ele quase em um grito, tamanha a urgência em sua voz — não são definidas por fronteiras urbanas ou limites de município. Elas são feitas das crenças das pessoas que vivem nela e ao redor”. Essa mensagem torna Nós somos a cidade uma marca inequívoca da era Trump, um libelo de reconhecimento e superação das diferenças entre os progressistas e, ao mesmo tempo, de uma aposta que foge de qualquer mediação institucional. 

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.