Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Paisagem na neblina

Para crítico, a ideia da névoa, além de marca da arquitetura contemporânea, é elemento central dos nossos tempos

01dez2018

O livro começa anunciando que uma das principais características da arquitetura contemporânea é o nublamento. Sobreposições de vidros foscos e leitosos geram superfícies translúcidas que recobrem as estruturas como invólucros, onde a luz é pensada como um jogo ilusionista de diferentes opacidades. O esqueleto dos prédios dificilmente se deixa entrever, como se pairasse numa leveza evanescente e vaporosa, como se a arte mais sólida e tangível se permitisse flutuar. 

É a materialidade das estruturas arquitetônicas que deixa de ser apreensível. A névoa produz ilegibilidade, ausência de orientação por meio da fragmentação de caminhos e entradas, vedando o acesso ao sistema de referências que conformam o interior dessas construções.

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Grande parte dos atributos do nublamento é definida pela perda: de visibilidade, de orientação, de acesso, de compreensão. A perda é medida em relação ao que veio antes, ao projeto moderno — quando o vidro não era utilizado como estratégia de velamento, mas artifício de transparência para deixar as estruturas inteiramente descobertas. Os limites eram claros e definidos, as referências de formação e funcionamento das edificações se apresentavam sem qualquer mistério. 

Verdade e honestidade eram as promessas desse ideal de transparência que não parecia ter nada a esconder. A névoa entrava no conjunto de significados próprios da experiência moderna. Vapor e fumaça eram associados ao progresso e à potência da técnica, e não à falta de nitidez.

Os atributos do nublamento se definem pela perda: de visibilidade, de orientação, de acesso, de compreensão

Mas Dentro do nevoeiro não é um livro apenas sobre arquitetura contemporânea, ainda que, por si só, o tema já justificasse toda a atenção. Para além das constantes correlações que Guilherme Wisnik faz entre arquitetura e arte — a arquitetura contemporânea encontra analogia no desvanecimento do sfumato, nas brumas da técnica oriental do sumi-ê ou mesmo nas fotografias em longa exposição, que registram vultos etéreos —, a tese é de que o nublamento não é somente a característica marcante da arquitetura e de seu campo ampliado, mas é a grande marca de nossos tempos.

Cerração estrutural

A poluição atmosférica recobre as paisagens urbanas como se fosse uma névoa. Há também a nuvem impalpável dos fluxos financeiros, a nuvem dos dados e das trocas de informação na internet. A névoa de poeira da demolição do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em Saint-Louis, no Missouri, na década de 1970, que representou não apenas uma destruição, mas um marco da derrocada do projeto moderno e de sua promessa de construir moradias para todos numa sociedade de massas. A mesma névoa de poeira, mas desta vez na imagem da destruição das torres do World Trade Center em Nova York, após os ataques de 11 de setembro. E, recuando, a nuvem que se seguiu às bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. 

A nebulosidade teria se enraizado em nossa própria capacidade de entendimento, em todos os âmbitos da experiência do sujeito

Wisnik propõe uma justaposição sequencial de imagens, numa constelação em que poucos fios são amarrados entre elas. São antes unidas por uma analogia entre os traços mais marcantes da forma e pelo efeito que provocam. Essa justaposição caleidoscópica — não há pretensão de estabelecer causalidades, consequências ou raízes comuns, mas simplesmente aproximar pela semelhança — serve para ilustrar um tempo de incertezas. 

Para o autor, a névoa não estrutura apenas nossa relação com o meio ambiente, os fluxos financeiros, a vida digital, o modo de construir cidades, o terrorismo e a violência. A nebulosidade teria se enraizado em nossa própria capacidade de entendimento, em todos os âmbitos da experiência do sujeito, em todas as relações sociais e comprometeria até mesmo a própria razão.

É a própria experiência da modernidade que é posta em xeque. O nublamento da compreensão é o correlato do nublamento perceptivo e imagético. A crítica se volta à própria pretensão de desnublamento do modernismo. Não é por outra razão que Wisnik fala de uma impossibilidade de nos situarmos no mundo, de “um regime geral de baixa definição do pensamento [que] impede que tenhamos entendimentos mais nítidos acerca dos reais embates em curso no mundo atual” e de um embotamento generalizado — provocado pela vigilância sem fim das novas tecnologias, por um entorpecimento da vida cotidiana e pela anulação das energias transformadoras. 

É difícil imaginar o que pode servir de resistência a uma expropriação tão pervasiva e enraizada

A névoa é a imagem do “universo totalmente controlado do capitalismo tardio”. É um mundo labiríntico de imersão total, em que todos estamos “amarrados ao mastro de uma embarcação em colapso”, para usar as imagens de fim de linha presentes no livro. A alienação é completa e muito mais refinada. Se não há possibilidade à vista de sair da névoa, falar em emancipação parece delírio.

Se vivemos imersos dentro do nevoeiro, como sugere o título, e se a névoa controla, toma de assalto, embaralha e aliena de maneira violenta e totalizante, como é possível encontrar um lugar para a crítica? De dentro da névoa, é difícil enxergar limites e caminhos. Só é possível ter clareza de sua extensão em algum ponto de observação exterior, num espaço não enredado por completo nessas tramas de dominação. Senão, a captura é total e implacável. 

Sublimação da névoa

Nas últimas páginas, Wisnik tenta pensar em fissuras com potencial de ruptura, num jogo entre opacidade e nitidez, entre imersão e possibilidade de distanciamento, que passa pela recuperação do conceito de sublime. Mas, para o leitor, é difícil imaginar o que pode servir de resistência a uma expropriação tão pervasiva e enraizada, tão pouco ambígua, transposta para todas as dimensões da vida. 

Talvez a questão esteja na própria perspectiva que monta um mosaico de aproximações pela forma. Se é possível diagnosticar o nublamento, também parece ser possível uma ancoragem que não seja, ela própria, de dentro do nevoeiro.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).