História, Urbanismo,

Pensar com os pés

Para Rebecca Solnit e Francesco Careri, caminhar é o gesto necessário para transformar as cidades e lutar contra a opressão dos carros (e dos homens)

09nov2018

Andar: eis a nossa missão revolucionária depois das décadas em que moldamos nossas cidades ao prazer dos carros. Esta é a convicção que tem sido difundida por autores que vêm investigando os vários significados do ato de caminhar. Entre eles, merecem destaque o italiano Francesco Careri e a americana Rebecca Solnit.

Careri e Solnit não se filiam à linha dos que discutem a reinvenção da mobilidade urbana trocando as quatro rodas por duas — sem motor, de preferência — ou o transporte individual e privado por alternativas coletivas e públicas. Eles vão além e defendem a força política, ética e estética da mais natural forma de deslocamento e, cada um a seu modo, chamam a nossa atenção para uma figura bastante preterida nas grandes cidades da nossa época: o pedestre.

A cidade de São Paulo enterra duas ou três dezenas de pedestres por mês, mortos em atropelamentos. Quem precisa ou gosta de andar deve ter na memória o esporte radical que é vencer os obstáculos das calçadas e fazer a travessia de ruas e avenidas. É neste ambiente que várias cidades do país, a exemplo de grandes capitais pelo mundo, têm discutido “estatutos dos pedestres”, que passarão a regular não apenas os passos de cada um de nós, punindo-os inclusive, mas também definindo medidas para que as cidades se tornem mais “caminháveis”.

É nítido aí o enfrentamento entre pedestres e carros no horizonte desse debate, o que é muito diferente das perspectivas da literatura que tratou do ato de caminhar ao menos até o século 19 — H. D. Thoreau (Caminhando) e Anton Tchékhov (Um bom par de sapatos e um caderno de anotações). 

Não se trata mais do caminhante descobrindo trilhas em regiões rurais, florestas etc. A nova noção de caminhar é urbana, por áreas tomadas pela lógica dos carros, em que o deslocamento a pé assume papel político na disputa pela (re)configuração do espaço público e, com isso, indica que a cidade pode ser diferente. E melhor.

Nada disso é por acaso: basta lembrar que na última década chegou-se a 54% da população mundial vivendo em áreas urbanas. Caminhar tem impacto não apenas individual (autoconhecimento, contato com a natureza, com as pessoas), mas de caráter social, rumo a uma mudança da vida comum.

Em Caminhar e parar, de Francesco Careri, encontramos os desdobramentos de uma experiência que esse arquiteto italiano divulga desde os anos 1990, de início entre seus alunos, como um curso peripatético de arquitetura, e depois com o laboratório de arte urbana Stalker/Osservatorio Nomade, onde promoveu caminhadas em várias cidades do mundo.

As principais ideias de Careri sobre “o caminhar como prática estética” estão em Walkscapes, de que Caminhar e parar é um “complemento prático”, porque reúne relatos e reflexões a partir de suas experiências. Mas Careri também investiga agora a potência da pausa — parar, deter-se — durante a caminhada, como quem “toma uma posição” a partir das perspectivas estéticas, mas também éticas que se abrem quando aceitamos “perder tempo para ganhar espaço”.

Se a base da reflexão de Careri é a importância que o caminhar assume como instrumento de descoberta para artistas, nem por isso seu projeto se restringe ao campo artístico ou teórico. Ele aprende nas ruas e faz questão de falar a partir das ruas. Mergulha nas zonas precárias de Bogotá ou São Paulo para sair dali com as lições que multiplica: “Ações e reflexões que me permitiram sintonizar modalidades de exploração e permanência nos lugares, tentativas de construir — ao menos para mim — possíveis estradas através das quais expandir o campo de atuação da arquitetura, de local disciplinar claustrofóbico a aventura, por meio da qual transformar o mundo”.

Desejo de vagar

Transformar o mundo — este parece ser o horizonte de quem se entrega ao “Wanderlust” (“desejo de vagar”). Foi essa a palavra escolhida por Rebecca Solnit como título de seu livro, que aqui chegou apenas como A história do caminhar (subtítulo original) e consiste num verdadeiro tratado sobre as potências do ato de caminhar.

Numa sociedade em que o tempo gasto com a caminhada entre um ponto e outro passou a ser visto como um desperdício, justificando todos os instrumentos que usamos para reduzi-lo, tem algo de utópico propor que as pessoas deem preferência aos pés para levar seu corpo de um lugar a outro. Em A história do caminhar essa utopia é largamente defendida, mostrando como o ato de caminhar pode mudar a relação entre corpo e mente, mas principalmente afrontar a aceleração da vida cotidiana e servir de base para uma “tomada das ruas” que redefine o exercício da cidadania. Para Solnit, repensar a vida a partir do caminhar exige uma reflexão sobre os efeitos da industrialização e da tecnologia em nosso cotidiano, os impactos da privatização dos espaços públicos e a opressão que se revela na definição das formas de transitar pela cidade.

Ao investigar tudo que já foi dito sobre caminhar por escritores, filósofos e religiosos, bem como a potência que algumas caminhadas (peregrinações, marchas, procissões) assumiram em certas circunstâncias históricas, além de lançar-se em caminhadas que revelaram aspectos da vida antes engolidos pela velocidade, Solnit nos convence de que falar do caminhar nunca é falar apenas de colocar um pé à frente do outro: “O caminhar é um tema que sempre se extravia”.

A autora nos lembra que “para os homens sempre foi mais fácil andar pela rua do que para as mulheres”. Se falamos de sociedades que puniam as mulheres porque andar sozinha era sinônimo de devassidão sexual, a exposição à violência em nossas cidades é ainda um “argumento” para restringir a liberdade das mulheres, bem como para impedir que ocupem a esfera pública. Uma das constatações de Solnit diz respeito à temática da literatura escrita por mulheres, segundo ela marcadamente voltada para a intimidade, pelo simples fato de que as ruas lhes eram proibidas.

É contra todas essas restrições — a cidade dos carros, a pressa da vida cotidiana, o medo da violência, a dominação privada (e masculina) do espaço público — que se insurge a convocação de Solnit à prática do caminhar. E ela sabe dos percalços que se colocam em nosso caminho entre o que somos hoje e o que pode ser o nosso futuro: “É difícil imaginar uma sociedade civil viável sem a livre associação e o conhecimento do terreno que acompanham o caminhar”. Pois bem, cidadãos, pés à obra!

Quem escreveu esse texto

Tarso de Melo

Advogado e poeta, publicou Íntimo Desabrigo (Alpharrabio/Dobradura).