Teatro,

Abaixo a canastrice

Livro reúne em um só volume os ensinamentos de Stanislávski, a maior influência da atuação no cinema americano

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

“Precisamos nos vingar impiedosamente do que vemos na atuação contemporânea.” O russo Konstantín Stanislávski (1863-1938) poderia, hoje mesmo, adentrar uma sala de ensaio com essa frase-estandarte, e ninguém sequer desconfiaria que a fala tem pelo menos uma centena de anos. Isso porque, assim como a maioria dos gênios e revolucionários, Stanislávski mantém-se atual, invicto e necessário. Fato notório e sabido, fica ainda mais claro após a leitura de O trabalho do ator: diário de um aluno.

É atual porque a luta contra a canastrice, as atuações puramente mecânicas e o mau gosto continuam. Invicto porque, embora existam centenas de escolas e linhas de pensamento sobre o trabalho do ator, seu sistema é ainda o mais completo e potente. O “necessário”, pois, é consequência.

Em 1906, quando começou a juntar partes de seus escritos com as aulas, o diretor russo queria desenvolver um sistema, uma gramática da formação do ator, coisa inédita até então. A partir daí seus discípulos se separaram e divergiram a respeito dos ensinamentos do mestre. A obra foi dividida em partes quando deveria ter sido publicada num volume só. As primeiras traduções para o inglês foram cortadas e tiveram muitos termos adulterados, enquanto o próprio autor não parava de reescrever a interminável edição russa. 

Segundo o diretor Declan Donnellan, “durante grande parte do século passado, Stanislávski foi comunizado e capitalizado à vontade”. A começar pelo cinema americano, influênciado pela releitura que Lee Strasberg, em seu Actors Studio, fez do sistema.

É importante dizer que essa edição parece dar fim ao mar de mal-entendidos. Unifica o que é lido no Brasil em A preparação do ator e a A construção da personagem. Volta aos originais e a alguns inéditos e recupera o que havia sido perdido ou deturpado. 

“Não existe arte genuína quando não há vivência. A arte genuína começa quando o sentimento vem de dentro de você mesmo.” A frase resume um dos pilares do sistema. Parece fácil. Garanto que não é. Deve-se fazer dez apresentações boas e verdadeiras a cada uma que sai ruim. É o antídoto de Stanislávski contra os maus hábitos, difíceis de combater. 

Batalha contra os clichês

Não sei se Stanislávski foi um grande ator ou diretor, mas ao ler O trabalho do ator entendo que ele foi mais que isso. Sua vida foi uma grande batalha contra o vazio, o exibicionismo cênico, as convenções teatrais em voga na época, os truques da atuação. “É lamentável que todos os tipos de clichê sejam tolerados. Eles vão corroendo o ator por fora, como a ferrugem. Assim que encontram uma brecha, penetram fundo.” 

O sistema de formação dura dois anos. O livro é o diário do aluno Kóstia, com aulas e exercícios dados por Torstov, ambos alter egos do autor. No primeiro ano, trata do aspecto interno da personagem: senso de verdade, vivência, memória emotiva, concentração, acesso ao subconsciente e estado criativo do ator. A aula de estreia parece banal: subir no palco, sentar-se e simplesmente existir na frente de todos. O terror logo se estabelece: como existir cenicamente sem apelar a exageros e escapismos? 

No segundo, aprende-se a transformar tudo isso em expressão física, voz e fala, corpo, tempo, ritmo e carisma. Os exercícios de respiração e estudo da sonoridade de vogais e consoantes são “um martírio, mas fundamentais”, alerta o professor. Assim como uma nota errada pode arruinar uma melodia, meia suspensão em falso e o ator derruba a cena. Por fim, e talvez esta seja a parte mais bela, uma aula de ética e disciplina. “Os atores crescem à medida que aprendem cada vez mais o que é a arte, e entram em declínio quando a exploram.”   

Um diretor bem-humorado, paciente e amoroso guia seus alunos na busca pelo caminho para o poder criativo do subconsciente; a entregar-se sem pressa à solidão pública (aquela sensação de que você faz o que tem que fazer em cena, no seu tempo, e tem o público na mão); concatenar mente, vontade e sentimento traduzindo-os em ação; entender o objetivo final da peça, dividir o texto, nomear cenas, amar uma vírgula e nunca subestimar ou superestimar uma pausa. “As pausas psicológicas são anárquicas. Enquanto as pausas lógicas estão sujeitas a leis fixas, as pausas psicológicas recusam qualquer tipo de restrição.” Poesia pura isso. 

Agora imaginemos tudo isso na Rússia imperial: o homem falando de pausa anárquica quando pouco tempo antes, os atores, por decreto, ainda eram divididos em tipos: juvenil, pesado, protagonista, velho etc. Dirigiu as peças de Tchekhov, cujo estilo era naturalista e psicológico.

Cresci ouvindo que eu deveria amar a arte em mim mesma, e não eu mesma na arte. A frase é do autor, e esse mesmo amor fez com que ele, durante toda sua vida, se dedicasse obsessivamente ao trabalho dos atores que “devem criar o quê e como quiserem, mas com uma condição essencial: a de que seu processo criativo não vá contra a natureza e suas leis”. 

Devemos consultar o oráculo de Stanislávski com frequência, tanto quanto costumamos voltar a Shakespeare. O caminho é longo e o livro é pesado, mas, como diz o próprio, o que pode ser mais apavorante do que os olhos vagos de um ator no palco?

Quem escreveu esse texto

Martha Nowill

Atriz, é autora do livro de poemas O que ela quer (Edith) e roteirista do filme Vermelho russo.

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.