Quadrinhos,

Faremos Palmares de novo

As narrativas épicas que Marcelo D'Salete constrói a partir da história de resistência afro-brasileira

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Angola Janga: uma história de Palmares foi um dos livros mais comentados em 2017: destaque de listas de “melhores livros do ano” como a da Quatro Cinco Um, e em 2018 ganhou o Prêmio Grampo de Ouro de Grandes HQs, concedido por críticos especializados. Fruto de mais de uma década de pesquisa histórica e iconográfica, levada a cabo por um quadrinista brasileiro negro, professor e mestre em história da arte pela USP, Marcelo D’Salete, o épico Angola Janga é um livro de incontornável impacto estético, além de constituir uma arrojada abordagem narrativa sobre um acontecimento que o autor define como “o maior levante escravo negro na América, comparável à Revolução Haitiana”.

Para narrar a existência e a resistência do Quilombo de Palmares, na serra da Barriga, em Alagoas, no século 17, D’Salete traçou roteiros de possíveis perspectivas narrativas, esboços de desenhos, e visitou o Memorial de Palmares, no atual município alagoano de União dos Palmares, onde estava Angola Janga — termo quimbundo usado pelos palmaristas, que significa Pequena Angola. 

Ao longo da intensa pesquisa, o autor publicou também a novela gráfica Cumbe (2014), que acaba de ganhar nova edição no Brasil depois de uma incomum carreira internacional: já foi publicado em Portugal, França, Itália, Áustria e Estados Unidos. Em Portugal, Cumbe foi selecionado pelo programa Ler+, como sugestão de leitura para a rede escolar. A palavra “cumbe” é sinônimo de “quilombo”, e o tema comum às quatro histórias que compõem o livro é a escravatura no período colonial do país, com fortes marcas culturais do povo banto. Assim como em Angola Janga, as histórias são narradas do ponto de vista do negro escravizado e tematizam principalmente a resistência às várias formas de violência e injustiça social. A nova edição traz esboços e desenhos inéditos, além de um posfácio do autor.

A história do Quilombo dos Palmares — expressão maior da resistência à escravização da população negra no Brasil colonial — é tradicionalmente tratada de um ponto de vista eurocêntrico — nas palavras do autor, a partir da visão “daqueles comprometidos com a destruição de Palmares — soldados, oficiais, senhores de engenho, governadores, padres etc.”. 

Buscar o ponto de vista dos resistentes palmaristas foi um dos principais desafios, mas não o único. A própria imagem de Zumbi dos Palmares como herói não pareceu ao autor a mais apropriada. Por ocasião do lançamento do livro, em conversa com alunos do curso de Pós-Graduação do Instituto Vera Cruz, ele afirmou: “A minha ideia não é construir heróis, mas personagens mais complexos, o que sempre foi negado na história dos negros”.

Além disso, houve preocupação em destacar tanto a presença das mulheres na linha de frente da resistência quanto a sobrevivência das culturas e práticas religiosas dos antigos reinos do Ndongo, Matamba, Kongo e outros próximos, de onde vinha grande parte dos alevantados em Palmares. 

Ainda segundo o autor, não se trata “da” história de Palmares, mas de “uma” história. Uma abordagem dos conflitos que tem os documentos históricos como pistas, não como norte, já que a ficção assume papel significativo: “É a partir dela que podemos transpor muros e acessar, pela poesia e arte, aqueles homens e mulheres”. A leitura de Angola Janga vai, aos poucos, mostrando que os desafios foram vencidos com maestria. Entre um capítulo e outro, excertos provenientes de fontes históricas diversas contextualizam o conflito narrado a seguir.

Para complementar as informações históricas, há um anexo extenso, com um texto em que o autor narra o processo de pesquisa, uma cronologia, mapas e estimativas de embarque e desembarque de escravizados africanos. Por exemplo: os dados apontam o desembarque de cerca de 12 milhões de escravizados africanos entre 1501 e 1900, sendo cerca de 5,5 milhões apenas no Brasil.

Narrativa coesa

Um dos pontos fortes de Angola Janga é a perspectiva narrativa — verbal e visual. Não há um narrador onisciente, e a palavra é dividida entre os personagens, sobretudo os que viveram nos mocambos. Estima-se que no auge de Palmares houvesse mais de 20 mil pessoas lá. Os diálogos se apresentam em texto enxuto, dando protagonismo para as imagens. Os enquadramentos ora focalizam de perto as expressões faciais, ora se deslocam para um símbolo adinkra (sistema de representação gráfica de provérbios da África ocidental) riscado no tronco de uma árvore, ora para uma visão aérea dos mais de dez mocambos que formavam Angola Janga. 

Os espaços, acontecimentos e conflitos é que protagonizam a narrativa e nomeiam os onze capítulos que compõem a obra. “Cucaú”, por exemplo, dá nome a um dos capítulos centrais e narra o pacto mal-sucedido feito por Ganga-Zumba com o governador, em 1678, resultando na concessão de terras para um pequeno grupo de palmaristas dissidentes. De alguma forma, essa escolha revela que, apesar da perspectiva narrativa predominante ser a dos palmaristas, prevalece a opção por dismistificar falsos heroísmos.

A concisão e a intensidade caracterizam poeticamente as linguagens verbal e visual, mais próximas do registro artístico que de um relato histórico. A expressão da subjetividade dos personagens, assim como os não ditos, remetem a situações vividas pela população afro-brasileira ainda hoje. Basta lembrar que recentemente as comunidades quilombolas brasileiras quase perderam o direito à terra, tardiamente conquistado por decreto assinado pelo presidente Lula, em 2003, já que no ano seguinte uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo então PFL (Partido da Frente Liberal, atual DEM — Democratas) ameaçou derrubar o decreto. 

O julgamento dessa ação pelo Supremo Tribunal Federal durou quase seis anos e só foi concluído no dia 8 de fevereiro de 2018. O Brasil tem, atualmente, cerca de 3 mil comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares. Desse total, apenas 295 possuem o título das terras. 

Esse é, talvez, outro prodigioso alcance do autor diante dos desafios a que se propôs ao escrever Cumbe e Angola Janga: explicitar a atualidade de Palmares, a urgência de narradores que assumam a resistência como ponto de vista e de espaços que amplifiquem essas vozes. A síntese se encontra nas cenas finais de Angola Janga, quando a palmarista Dara salta alguns séculos e reaparece num Brasil que reconhecemos pelo “Fora Temer” pichado na fachada de um prédio. Um Brasil ainda desigual, racista, machista e escravocrata. O que ajuda a entender a força da dedicatória que D’Salete fez para jovens negros: “Faremos Palmares de novo!”.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Livros, Crianças e Jovens: teoria, mediação e crítica no Instituto Vera Cruz (SP).

 

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.