Psicologia,

O desconforto de Freud

Textos sobre cultura e sociedade do psicanalista discutem desde epidemias a nazifascismo

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

Sigmund Freud envia uma carta para sua família de Roma, em 22 de setembro de 1907, em que usa sua atenção flutuante para observar as mudanças na cidade. Para Freud, não há “interior” sem “exterior”, ou seja, o mundo psíquico do indivíduo está ligado à sociedade em que vive e seu contexto histórico. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos, o mais recente volume das Obras Incompletas de Freud (Autêntica), oferece nove ensaios escritos entre 1908 e 1938, que abordam a Primeira Guerra Mundial, a gripe espanhola e a ascensão do nazifascismo. 

Não é por acaso que os temas parecem atuais. A passagem do século 19 para o 20, com sua transformação das técnicas de comunicação, instaurou uma angustiante dinâmica cultural que só se intensificou. Em paralelo, o empuxo gravitacional do sentimento religioso, que aliena e conforta em iguais medidas, do qual Freud se ocupa em “O futuro de uma ilusão” (1927) e “Uma vivência religiosa” (1928). 

A montagem dos textos a partir do critério temático leva a uma leitura diversa daquela regida pelo critério cronológico, padrão no sistema de obras completas, pois permite observar não só a reincidência de certas preocupações (violência, religião, a cultura como “remédio”), mas também a rica interdependência entre sua obra e seu período histórico. Freud reage não só à guerra ou à gripe espanhola, mas também às peças de teatro em voga e aos livros e que circulam. 

Recorrendo a cientistas contemporâneos (Reik, Ferenczi) e a artistas e escritores (Schiller, Heine, Goethe), Freud enfatiza que a posição de saber é provisória: “Uma lei que, de início, foi considerada incondicionalmente válida mostra ser um caso especial de uma regularidade mais abrangente, ou é limitada por outra lei, que só irá ser conhecida mais tarde”, escreve em “O futuro de uma ilusão”.

Pessimismo e otimismo

Peça central da coletânea, o clássico “O mal-estar na cultura”, de 1930, nasceu como resposta de Freud à carta do escritor, Romain Rolland, Nobel em 1915. Na mensagem, Rolland desafia Freud a uma reflexão sobre o “sentimento religioso espontâneo”, que na obra finalizada será abordado a partir da noção de “sentimento oceânico” (a religião como elo ao coletivo, ao comunitário). Em sua resposta, Freud se mostra respeitoso e agradecido pelo contato de Rolland, reforçando, contudo, que a religiosidade será apenas um elemento lateral em seu estudo. 

A construção do ensaio é a história da tensão de Freud diante de dois polos opostos e complementares: o pessimismo e o otimismo. Em 1931, ao publicar uma versão revisada do ensaio, Freud modifica a frase final, acrescentando uma dúvida sombria com relação ao futuro: “Mas quem pode prever o êxito e o desfecho?”. Essa ambivalência entre atividade e passividade sobrevive ainda no título. “Cultura” ou “civilização”, “mal-estar” ou “desconforto”? O pensamento de Freud é indissociável da língua que utiliza e dos termos que seleciona para traduzir suas intuições teóricas. Por outro viés, reencontramos a mesma tensão no confronto do subjetivo com o social: “A cultura lida com o perigoso prazer de agressão do indivíduo”, escreve Freud, “enfraquecendo-o, desarmando-o e vigiando-o, por meio de uma instância em seu interior, como se fosse a ocupação de uma cidade conquistada”. A cidade e a formação da personalidade como cenários de combate. 

No ano seguinte, 1932, Freud troca cartas com Einstein, que integra um projeto sobre o futuro da “cooperação intelectual”. A correspondência foi publicada em Paris, em 1933, mas sua circulação foi proibida na Alemanha nas primeiras semanas da meteórica ascensão do nazismo. “Há um caminho para libertar os seres humanos da guerra?”, pergunta Einstein. “Talvez não seja uma esperança utópica que a influência desses dois fatores, a postura intelectual e a angústia, justificada diante dos efeitos de uma guerra futura, consiga pôr fim à prática da guerra em um tempo previsível”, responde Freud, infelizmente equivocado, como teve condições de observar alguns anos depois.

Mais do que a evidência da tomada de uma posição fixa (otimismo, pessimismo), os ensaios de Freud mostram o trabalho constante de uma elaboração. Ou seja, um processo de enfrentamento do mundo que leva em consideração tanto o passado mais remoto quanto a atualidade mais fresca, e que tenha, por fim, noção da própria transitoriedade. 

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.