Psicologia,

Fantasias e realidade

A relação entre filhos e mães e as implicações da infância em nossas perversões sexuais são discutidas em ensaios clássicos da psicanálise

01set2020 | Edição #37 set.2020

Dois títulos se destacam entre as obras lançadas recentemente no país voltadas para a psicanálise: Bate-se numa criança, de Sigmund Freud e Anna Freud, e Bebês e suas mães, do pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott. A primeira é composta por dois textos, um escrito por Freud — “Bate-se numa criança: contribuição ao conhecimento da origem das perversões sexuais” — e o outro — “Fantasias de surra e devaneios” — escrito por sua filha Anna, publicado pela primeira vez no Brasil. 

No texto de apresentação, Marco Antonio Coutinho Jorge, coordenador da coleção Freud e Seus Interlocutores, da editora Zahar, chama atenção para que se poderá ler em conjunto ambos os textos, “uma vez que eles tratam do mesmo tema sob perspectivas diversas: a do analista e a do analisando”.  

Fantasia

Uma boa obra crítica de Freud deve se ater tanto ao texto quanto ao contexto. Em “Bate-se numa criança”, ele toma como ponto de partida a experiência clínica, incluindo a análise de sua própria filha. Se hoje a ideia pode soar disparatada, analisar familiares e amigos não era um processo incomum no início da psicanálise. 

A redação do ensaio teve início em dezembro de 1918, pouco antes da conclusão do primeiro rascunho de Além do princípio do prazer. Portanto, está localizado em um momento crucial da obra freudiana, que Jorge chama de “grande virada de 1920”, com o advento do novo dualismo pulsional — pulsão de vida e pulsão de morte — e a consequente reviravolta teórica, em que Freud propõe os conceitos de Eu, Isso e Supereu.

Às voltas com a ideia de pulsão de morte, ele abordou o tema da fantasia sob esse prisma, destacando o vínculo entre o gozo e a dor. Na conclusão, Freud formula que a “sexualidade infantil sujeita ao recalcamento é a principal força motriz da formação de sintomas, sendo a parte essencial de seu conteúdo, o Complexo de Édipo, o complexo nuclear da neurose”, indicando que as “aberrações sexuais da idade infantil e também da idade madura derivam do mesmo complexo”.

Freud toma como ponto de partida a experiência clínica, incluindo a análise de sua própria filha

Em um volume dedicado a “Bate-se numa criança”, a psicanalista americana Ethel Spector Person reforça a atualidade do texto, destacando que “as fantasias masoquistas estão tão difundidas que diagnosticar um paciente como perverso baseando-se exclusivamente em suas fantasias suporia qualificar de perversos muitos de nós”. 

Já o artigo de Anna Freud amplia o ensaio do pai, com contribuições escritas sob forte influência da amizade apaixonada com a filósofa e psicanalista Lou Andreas-Salomé, muito admirada também pelo pai e que também encantou Nietzsche e Rainer Maria Rilke. “Anna escreve a Freud que, sem Lou, ela não teria podido escrever o texto”, comenta Jorge. O artigo foi apresentado em 1922 na Sociedade de Viena, assegurando sua admissão como membro e, por tabela, também a admissão de Salomé. 

Uma das conclusões mais bonitas do texto diz respeito ao processo de escrita da fantasia: “Ela tinha buscado criar uma espécie de existência independente para os protagonistas, que tinham se tornado vívidos demais, na esperança de que com isso eles não mais dominassem a sua vida de fantasia. O devaneio com o cavaleiro efetivamente terminou depois de ter sido escrito”. Para a autora, há um ganho indireto de prazer nesse deslocamento. “Poderíamos dizer: ela encontrou o caminho que traz sua vida de fantasia de volta à realidade.” Há qualquer coisa de literária nessa afirmação.

Unidade de duas pessoas

Cinco anos depois, o médico inglês Donald Woods Winnicott iniciou a sua formação na Sociedade Britânica de Psicanálise, que levou à publicação de seu primeiro livro de observações clínicas sobre os distúrbios de infância. Durante a Segunda Guerra Mundial, Winnicott passou a trabalhar com crianças que haviam sido separadas de suas famílias e, no fim da guerra, foi contratado pelo Departamento Infantil do Instituto de Psicanálise de Londres, onde ficou por 25 anos. Membro da Unesco e da Organização Mundial de Saúde, publicou dez livros e centenas de artigos. No Brasil, sua obra está ganhando uma nova tradução de Breno Longhi e vem sendo republicada pela editora Ubu.

Na mais atual, Bebês e suas mães, temos doze ensaios reunidos (entre os quais três são inéditos) que tematizam a relação mãe-bebê — “a unidade entre duas pessoas que, de fato, são duas, e não uma”, diz ele. 

No bonito prefácio, a psicanalista Maria Rita Kehl propõe a pergunta: “Como é possível que, sem a ajuda de um especialista — termo tão valorizado em nossa atual sociedade tecnocientífica —, quase todos os bebês sobrevivam à inexperiência, ao ‘amadorismo’ das mães?”. Então ressalta que escolheu essa palavra para lembrar que, entre outras acepções, “amador” é “o nome dado àquele que exerce algum ofício por amor”.  

O trecho antecipa o tom do livro, em que o autor fala da “mãe suficiente boa” e ressalta que “o bebê precisa que a mãe falhe ao se adaptar”. Observa que nenhuma das mães — para sorte dos bebês — será perfeita: “O espaço vazio ou o desconforto provocado por tais falhas será preenchido aos poucos, na atividade mental da criança, pela atividade da fantasia”. 

Fantasia é a palavra de ordem para  ambos os livros. Outro denominador comum que encontramos entre obras tão diferentes é o cuidado com a linguagem. Freud elogiou o artigo da filha tanto pelo conteúdo quanto pela forma — algo que ele, que também era um grande escritor, nunca perdeu de vista. Como Freud, Winnicott tem um texto que se apresenta com complexidade, mas sem hermetismos. Prezando sempre pela clareza, ambos desejam se comunicar, estabelecendo pontes. 

Ainda no prefácio de Bebês e suas mães, Maria Rita Kehl destaca que a “sabedoria contida neste livro sexagenário me parece ainda mais necessária ao mundo atual — quando as pessoas desconfiam cada vez mais do valor da experiência transmitida entre sujeitos que compartilham destinos semelhantes”. 

Quem escreveu esse texto

Fabiane Secches

É psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.