Política,

Tristes tribos

Ensaísta americano aproxima as ideologias reacionária e identitária e propõe nova agenda cívica para o liberalismo

28nov2018

A política moderna sempre foi dominada por uma concepção whig da história. Se o progresso se faz em linha reta rumo ao futuro, a questão está em saber se esse avanço inexorável se fará rapidamente ou a passo de caracol. De certa forma, a divisão entre “progressistas” e “conservadores” lida com o ritmo das mudanças. Os primeiros desejam mudanças imediatas e em larga escala; os segundos preferem-nas graduais e pontuais. Mas ambos não negam que mudar faz parte da condição humana. 

Essas duas narrativas, que nasceram com a Revolução Francesa, deixaram de ter relevância na política contemporânea: a visão whig foi derrotada por “reacionários” e “identitários”. Os primeiros recusam a mudança e defendem um retorno ao passado — perfeito e obviamente idealizado, que só existe na cabeça deles. Os segundos preferem uma forma de política, ou de antipolítica, em que os interesses do grupo suplantam o bem comum. 

Mark Lilla, um dos mais importantes ensaístas norte-americanos, retratou essa regressão política, que atinge a direita e a esquerda em partes iguais.

Em A mente naufragada: sobre o espírito reacionário, Lilla se ocupa desses nostálgicos radicais que não estariam merecendo a devida atenção histórica e filosófica. É uma afirmação contundente, porém inexata: o pensamento reacionário, desde a Revolução Francesa, tem sido estudado e glosado por gerações sucessivas de autores. Para ficarmos no nosso tempo (e apenas em língua inglesa), as monografias de Raymond Tallis ou de Darrin McMahon — para não falar dos ensaios magistrais de Isaiah Berlin — são prova de um interesse perene pelos “inimigos da esperança”, na expressão de Tallis. 

Do islã radical a Houellebecq

A originalidade de Lilla está na capacidade de entender o espírito reacionário nas suas múltiplas manifestações. Encontra-se no islamita radical, nos nacionalistas europeus, na direita americana de Donald Trump. Mas também se encontra nos textos eruditos de Leo Strauss, nos entusiasmos da extrema esquerda com a “teologia política” de cariz schmittiano ou nos romances de Michel Houellebecq. O que une essa galeria tão diversa?

A mesma estrutura mental: a crença de que houve um tempo em que havia ordem no mundo e a existência humana era harmoniosa e feliz. Pelo menos até o dilúvio chegar por culpa de intelectuais, políticos ou ambos.

A ambição do reacionário está em frear e recuar os ponteiros do relógio, enjeitando qualquer compromisso com um presente corrompido. Nesse sentido, e tal como Lilla defende, o reacionário exibe a mesma postura radical do revolucionário. A diferença está no sentido da sua ruptura: se o revolucionário pretende romper com o presente para construir uma utopia futura, o reacionário acredita que essa utopia já existiu. Regressar a esse passado é a sua teoria e prática.

O espírito reacionário define um dos extremos da política; o tribalismo da identidade, o outro

A proposta tem plena validade para entender o islamismo radical ou expressões políticas nacionalistas que defendem um fechamento físico e cognitivo ao exterior. Mas é legítimo perguntar se na filosofia política de Strauss ou nos romances de Houellebecq encontramos realmente o espírito reacionário em toda a sua extensão.

Duvidoso. É um fato que Leo Strauss, na sua análise da modernidade, radicava em Maquiavel o primeiro cisma com a tradição naturalista clássica. Mas Strauss nunca alimentou nenhuma esperança sobre um retorno maciço a valores transcendentais que se situariam acima das conveniências do estadista. Quando muito, esse “restauracionismo” seria obra para filósofos e acadêmicos, não para as massas (e muito menos para os neoconservadores que se reclamaram seus herdeiros).

O mesmo vale para Houellebecq: denunciar o Iluminismo como fonte de todos os males não significa para Houellebecq retroceder à medievalidade cristã. Para ele, o naufrágio não tem solução. O seu pessimismo é terminal. 

Se o espírito reacionário define um dos extremos da política contemporânea, o tribalismo da identidade se encontra no outro extremo. Mark Lilla sabe do que fala: ele, um liberal da velha escola (“liberal” no sentido progressista do termo), não está contente com o estado da esquerda americana. O resultado desse descontentamento está em O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias

Trump venceu a corrida presidencial em 2016, mas o livro não é sobre ele. O problema está na crise do liberalismo americano do século 21, uma crise de imaginação e ambição que não pode gerar entusiasmo nem confiança nos eleitores. Ela, em rigor, não começou nos nossos dias. Para Lilla, foi nos anos 1980, quando a revolução individualista de Ronald Reagan enterrou definitivamente a grande narrativa cívica do New Deal de Franklin Roosevelt e da “Grande Sociedade” de Lyndon Johnson. 

Perante o triunfo de Reagan, a esquerda cometeu uma dupla traição sobre o seu ideário: em primeiro lugar, não soube defender as conquistas sociais do passado; e, em segundo, cedeu ao individualismo do tempo, refugiando-se nas causas identitárias. 

A defesa dos direitos das mulheres, dos negros ou da comunidade lgbt é importante. Mas, politicamente falando, não basta celebrar a “diversidade”. É preciso sujar as mãos e vencer eleições em todos os pleitos disponíveis. 

Como escreve Mark Lilla com gélida lucidez, defender os negros dos abusos policiais ou os gays da violência cotidiana implica ter procuradores e juízes que não toleram crimes contra minorias. E isso implica, ao menos nos Estados Unidos, eleger governadores e deputados estaduais capazes de garantir a indicação desses magistrados.  

Eis, em suma, a proposta para a esquerda do século 21: abandonar o “liberalismo identitário” que tem balcanizado a esquerda americana das últimas décadas e defender um “liberalismo cívico” abrangente e pragmático que privilegia a política institucional sobre a “política dos movimentos”; a persuasão racional sobre a mera “autoexpressão”; a cidadania sobre qualquer identidade de grupo; e uma educação cívica para o bem comum. 

É uma boa proposta para a esquerda americana — e, pensando bem, para a direita também. A democracia liberal só sobrevive pela recusa do pensamento tribal e do triste radicalismo que assaltou o palco da história. 

Quem escreveu esse texto

João Pereira Coutinho

Escritor e cientista político, escreveu Vamos ao que interessa (Três Estrelas).