Política,

Marx e Engels para o século 21

O que as biografias dos pensadores bicentenários esclarecem não só sobre o momento em que suas ideias nasceram, mas também o presente

05maio2021 | Edição #46

“Marx vive em um dos piores — portanto um dos mais baratos — quarteirões de Londres. […] Não se vê no apartamento uma única mobília que seja limpa e sólida. Tudo está quebrado e em pedaços, com um meio palmo de poeira sobre tudo. E há uma grande e antiga mesa coberta com oleado e nela estão seus manuscritos, livros e jornais, assim como brinquedos de crianças e trapos e retalhos da cesta de costura de sua esposa, diversas xícaras com as bordas quebradas, facas, garfos, lamparinas, o tinteiro, cachimbos holandeses, cinzas de tabaco — em uma palavra, tudo desarrumado e tudo na mesma mesa.” Esse trecho do relatório escrito por um espião prussiano em 1852, citado por Peter Stallybrass em O casaco de Marx (Autêntica, 2004), descreve o ambiente em que foram gestadas algumas das mais influentes ideias de todos os tempos, mas também chama atenção para o fato de que a curiosidade despertada pela vida de Karl Marx (1818-83) nem sempre se restringiu ao círculo de seus admiradores.

A figura de ‘comunista capitalista’ de Engels sempre foi prato cheio para o reducionismo dos detratores

A influência que Marx atingiu já em sua época — no debate intelectual, mas principalmente nos movimentos da classe operária — fez com que o interesse por sua vida crescesse mais rapidamente do que a dedicação a ler e compreender seus textos. Desde o século 19, não é difícil encontrar, junto a distorções grosseiras de suas ideias, a referência a “fatos” que, supostamente, revelam contradições entre o discurso e a vida do filósofo, de modo que as disputas sobre o significado de suas obras não raro resvalam para ataques às “incoerências” de sua biografia. Justiça seja feita, também do outro lado do espectro político acontece algo parecido: é escrita muita hagiografia sob a capa das biografias de Marx e, sem dúvida, isso é tão ruim para a compreensão de sua obra quanto a sanha acusatória de seus inimigos e adversários.

Inseparáveis

Não poderia ser diferente o tratamento dedicado a Friedrich Engels (1820-95), camarada de Marx em todas as lutas durante a maior parte da vida deles. Aliás, uma biografia de Marx é quase sempre uma biografia de Engels, e vice-versa, porque seus percursos são inseparáveis. Marx era o filho de um advogado que, depois de fazer direito, se afastou da sombra do pai para tentar carreira acadêmica na filosofia e, rapidamente, viu as portas da universidade se fecharem, partindo para uma vida em que a produção intelectual teve que superar muitas perseguições políticas e privações financeiras. Já Engels, filho de um industrial muito bem-sucedido, conciliou a dedicação à filosofia e à militância revolucionárias e a administração dos negócios da família, de que retirava o dinheiro que foi fundamental não apenas para ele, mas para a sobrevivência dos Marx. Previsivelmente, a figura de “comunista capitalista” sempre foi prato cheio para o reducionismo dos detratores, que atiram em Engels para atingir Marx e, claro, tentar diminuir o que o pensamento de ambos representa na luta contra o capitalismo e suas profundas contradições.

É válido, decerto, e mesmo necessário questionar a vida por trás — e ao redor — das obras. No entanto, pegar o atalho biográfico para “desmoralizar” autores e, assim, tentar bloquear seu pensamento é apenas um artifício da luta ideológica (à maneira das acusações que são feitas aos “esquerdistas de iPhone”), que amesquinha um debate que, ao contrário, só pode se fortalecer à medida que estejamos dispostos a encarar toda a complexidade histórica, inclusive da vida dos autores. Daí a importância de fazer circular biografias competentes.

É assim que chegam ao leitor brasileiro a biografia de Marx e a de Engels escritas por José Paulo Netto e Gustav Mayer, respectivamente, aprofundando o conhecimento histórico que contextualiza e atravessa a obra dos filósofos. O livro de Mayer já era havia muito tempo aguardado por aqui e o de Netto é uma ótima notícia para quem acompanha o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O Engels de Gustav Mayer cumpre o mesmo papel de clássico que o Marx de Franz Mehring, de 1918, por serem biografias que, pioneiramente, organizaram as informações sobre os filósofos que desde sempre eram alvo de maledicências. Ressalte-se, ainda, que o acesso às principais obras de Marx e Engels não era exatamente fácil à época (e boa parte nem sequer havia sido publicada). Por isso, toda publicação da obra monumental de Marx e Engels, em edições mais completas e cuidadosas, ao lado de outros estudos sobre suas ideias e, claro, tantos estudos que delas se desdobram para enfrentar questões atuais, é certamente algo a ser comemorado, porque a qualidade da intervenção da teoria marxista em nosso tempo tende a ser maior à medida que sejamos capazes de compreender como ela se relaciona com seu próprio tempo. É no bojo dessa investigação histórica que as biografias de Marx e Engels, mais do que responder a curiosidades, cumprem o importante papel de esclarecer, sob a perspectiva privilegiada que a vida dessas figuras centrais oferece, o momento histórico em que suas ideias foram forjadas.

Karl Marx — uma biografia e Friedrich Engels — uma biografia (o paralelo entre os títulos não é casual) somam-se a um esforço crescente, de diversas editoras, para enriquecer a bibliografia marxista no Brasil. São inúmeras as perspectivas que essas obras abrem para o leitor de Marx, Engels e demais autores das diversas correntes marxistas em um arco de mais de 150 anos — ângulos novos, caminhos diferentes, outras questões e trincheiras. É bom dizer: um leitor que atravessa um momento em que a perseguição às ideias críticas ao capitalismo é tão intensa, ardilosa e violenta quanto aquela enfrentada por eles no século 19 e por seus seguidores dali em diante. Poder olhar com profundidade para aquele tempo é uma forma de trazer com mais força suas ideias até nossos dias.

Note-se, nesse sentido, que a biografia de Engels por Gustav Mayer (1871-1948) é o resultado de pesquisas realizadas nas décadas de 1910 e 1920, primeiramente publicadas em dois volumes (em 1919 e 1932) e depois condensadas em um (em 1934), que serviu de base para a consagrada edição inglesa (de 1936), agora traduzida no Brasil. Já a biografia de Marx por José Paulo Netto foi escrita por um brasileiro no século 21, coroando a vasta e importante produção de um militante e pesquisador da área do serviço social, dedicado desde os anos 1970 à reflexão e à divulgação do pensamento marxista. “Não é somente um registro cronológico, ainda que o contenha; ela acompanha o processo de construção da teoria marxiana, ao mesmo tempo que o contextualiza historicamente e o inscreve na experiência sociopolítica de Marx”, escreve o autor.

Premiado livro ilustrado se inspira na obra de Karl Marx para tratar de temas como amizade, ganância e engodo

De fato, o percurso de Marx aparece registrado com muito detalhe em mais de oitocentas páginas, das quais duzentas são dedicadas a notas, setenta à bibliografia e mais de cinquenta à iconografia, com um cuidadoso índice onomástico ao final. Mas, para além desse retrato meticuloso, chama atenção uma pretensão ainda mais necessária: propor uma interpretação desse homem, político e teórico que seja capaz de trazê-lo vivo para o nosso tempo. Divirja-se aqui e ali das interpretações do autor para as complexas questões teóricas enfrentadas por Marx (até mesmo porque essas divergências são fundamentais para a vitalidade do marxismo), mas deve-se aplaudir a seriedade com que ele se desincumbiu da empreitada, que envolve imensas dificuldades documentais e teóricas, tão grandes quanto o alcance político que Marx teve e tem para além dos livros que escreveu.

São famosas as palavras que Engels disse no enterro de Marx, como um resumo da descoberta científica de seu grande amigo: “Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o simples fato, até então escondido pela proliferação ideológica, de que as pessoas precisam primeiro comer, beber, morar e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião etc.; ou seja, de que a produção dos meios materiais imediatos de vida — e, consequentemente, a etapa de desenvolvimento econômico respectiva de um povo ou de um período — forma o fundamento sobre o qual se desenvolveram as instituições do Estado, as concepções jurídicas, a arte e até mesmo as ideias religiosas das pessoas em questão; é a partir dessa base que se devem explicar esses desenvolvimentos — não o contrário, como vem acontecendo até agora”.

Por maiores e mais geniais que tenham sido os esforços de Marx e Engels para vencer essa proliferação ideológica que impede tantos homens e mulheres de verem com clareza e transformarem sua própria realidade, não terminava ali luta alguma. Longe disso. Basta lembrar que, mais de um século depois, mesmo Darwin — que havia morrido um ano antes e está enterrado a poucos quilômetros de Marx — não pode dormir em paz.

Na biblioteca

As novas biografias lançadas pela Boitempo dão continuidade à publicação das obras de Marx e Engels pela editora. Já são quase trinta títulos da Coleção Marx-Engels, dedicada às obras individuais e conjuntas dos dois filósofos, incluindo a primeira tradução de Grundrisse, por Mario Duayer, e a de Rubens Enderle para a obra máxima de Marx, O capital — que já circulava por aqui em outras duas traduções integrais: a de Reginaldo Sant’Anna, lançada pela Civilização Brasileira (1968/74), e a de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe, da coleção Os Economistas, da Abril (1982/4).

Durante décadas, além das biografias sucintas incluídas em livros e enciclopédias, para trabalhos mais aprofundados o leitor contava principalmente com obras pioneiras como a de Leandro Konder, Marx — vida e obra (lançada em 1968 pela José Álvaro Editora, reeditada diversas vezes pela Paz & Terra e atualmente pela Expressão Popular) ou com as biografias “soviéticas” de Marx e Engels, escritas por diversos autores e apresentadas como versão oficial do Partido Comunista (lançadas em português pelas editoras Avante! e Progresso, de Lisboa, no início dos anos 1980).

Nos últimos anos, contudo, foram traduzidas no Brasil muitas biografias de Karl Marx, escritas em épocas e com propósitos diferentes, desde a de Francis Wheen, Karl Marx (Record, 2001) até a de Marcello Musto, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) (Boitempo, 2018), passando pelos trabalhos de Jacques Attali, Karl Marx ou o espírito do mundo (Record, 2007), Franz Mehring, Karl Marx: a história de sua vida (Sundermann, 2013), Jonathan Sperber, Karl Marx: uma vida do século 19 (Amarilys, 2014), Gareth Stedman Jones, Karl Marx: grandeza e ilusão (Companhia das Letras, 2017), e o primeiro dos três volumes de Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra (1818-1841) (Boitempo, 2018), de Michael Heinrich. Registre-se, ainda, o volume Marx pelos marxistas (Boitempo, 2019), que reúne textos de pessoas que conviveram com Marx e/ou foram decisivas para a projeção de sua obra, e também o recente Cartas sobre O capital (Expressão Popular, 2021), que reúne parte substancial — e substanciosa — da correspondência de Marx e Engels, entre si e com outros leitores de primeira hora, cruzando décadas de aperfeiçoamento das ideias que formariam a grande obra de Marx.

A correspondência de Marx mostra seu interesse especial pelo trabalho nas fábricas

Nessa correspondência, é possível acompanhar o cuidado com que Marx se informa de aspectos específicos do trabalho nas fábricas (até mesmo enviando cartas ao “industrial” Engels para que lhe esclarecesse o funcionamento de teares, por exemplo) e das mais variadas questões econômicas mundo afora, solicitando material a todos que estavam ao seu alcance para a redação do livro. Isso é ainda mais relevante porque a fama de “obra difícil” de O capital está muitas vezes relacionada à descrição detalhada de processos produtivos, comerciais etc. que Marx faz questão de incluir no seu texto, por páginas e páginas, para demonstração das tendências da reprodução do capital. Da mesma forma, as cartas também documentam a forma implacável como ele defendia suas ideias diante dos debates suscitados pela publicação do primeiro volume da obra.

Além desses livros dedicados ao autor de O capital e da biografia de Engels escrita por Tristram Hunt, Comunista de casaca (Record, 2010), outras importantes publicações recentes abrem novas perspectivas para a compreensão das figuras de Marx e Engels, com especial destaque para Amor & capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução (Zahar, 2013), de Mary Gabriel, e a anunciada edição da Obra completa (Aetia, 2021) da filha de Marx, Eleanor (1855-98). A propósito, a editora Expressão Popular está lançando uma biografia de Eleanor escrita por Rachel Holmes e uma reedição do romance Eleanor Marx, filha de Karl, de Maria José Silveira.

Quem escreveu esse texto

Tarso de Melo

Advogado e poeta, publicou Íntimo Desabrigo (Alpharrabio/Dobradura).

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.