Política,

2013 e a década que não terminou

Jornalista elenca e interpreta as pautas que movimentam o Brasil desde as Jornadas de Junho

18maio2023 | Edição #71

Assinado pelo jornalista e editor-chefe do Nexo Jornal, Conrado Corsalette, Uma crise chamada Brasil é mais do que o spin-off da minissérie homônima de 2022, abrigada no podcast Politiquês. O livro tem, sim, como ponto de partida as pautas, as entrevistas e a agenda política que movimentou o país de 2013 para cá, mas, para além disso, oferece um panorama bem-informado e inteligente sobre os temas que estiveram no noticiário ao longo dos últimos anos.

O autor investe na interpretação da crise econômica de 2008 como pano de fundo para o que aconteceria na década seguinte. Corsalette não traz uma leitura inovadora da crise, mas é hábil ao equilibrar argumentos fundamentados no estado da arte da economia com fragmentos de entrevistas com especialistas conceituados. A pluralidade de vozes e certo apelo acadêmico à fundamentação dos temas -— prática que se vê apenas em suplementos especiais dos jornalões brasileiros — tornam a abordagem original. Em certa medida, este é o esteio que sustenta o livro.

Corsalette se sai muito bem diante da tarefa hercúlea de analisar o fenômeno das Jornadas de Junho de 2013. O autor faz a lição de casa ao resgatar a ebulição de protestos em outras partes do mundo, como a Primavera Árabe (2011) e o Occuppy Wall Street (2011), além de mencionar a Marcha da Maconha, evento que pode parecer pouco importante, mas, para ele, é parte de algo maior, como reforça ao destacar o papel das mídias digitais como elemento aglutinador.

Ao comentar o passo a passo de junho, para além de trazer para a conversa personagens que participaram dos protestos, como o jornalista Bruno Torturra e Mayara Vivian, do Movimento Passe Livre, Corsalette problematiza o trabalho da imprensa, que, afirma, teve papel decisivo no modo como as marchas eclodiram pelo país. O fato de a abordagem da imprensa tradicional ter mudado de tom em poucos dias (da recriminação ao endosso) — ele cita o caso emblemático da revista Veja — é um sinal de ponto de virada, uma espécie de consequência da fusão “entre a vida analógica e a digital”, para usar as palavras do autor. Vale a pena observar, a propósito, a escolha das citações e dos depoimentos. Além das visões de Vivian e Torturra, são mencionadas as da cientista política Angela Alonso e do jornalista Reinaldo Azevedo, que se manteve crítico aos protestos daquele ano. 

Essa parte do livro estabelece um fio condutor entre os protestos de 2013 e a chegada de outro perfil de manifestantes às ruas — no caso, o Movimento Brasil Livre, o Vem Pra Rua e o Revoltados Online. Esse é o momento em que surge Esther Solano, uma das principais intérpretes dos protestos ocorridos na década passada. Corsalette contrapõe essa reflexão com a experiência vivida por Rogerio Chequer, líder do Vem Pra Rua. Há espaço para essa dinâmica por conta do diálogo proposto pelo texto, uma marca registrada de Uma crise chamada Brasil porque o livro privilegia os fatos e as evidências — o que não quer dizer que o autor não tome partido.

Lava Jato

Antes de comentar os vícios da operação, o autor explica o significado de algumas expressões que se tornaram elementares para o acompanhamento do noticiário político. Assim, ao definir para o leitor “prisão preventiva”, “condução coercitiva” e “delação premiada”, ele faz com que o livro não se transforme numa teia com fim em si mesma. Ponto para Corsalette. A reconstituição da Lava Jato remonta não apenas ao rescaldo das manifestações, mas, também, ao fato de que as ações do judiciário em geral, e do stf em particular, ganharam protagonismo com a TV Justiça. Citando o ex-ministro Nelson Jobim, o autor enfatiza como as câmeras alteravam a condução dos julgamentos.

Os críticos da operação existem hoje aos montes, começando no próprio judiciário. Só que antes de esse momento chegar, também o Supremo teve a sua hora lavajatista. A propósito, Corsalette recupera importante decisão do stf sobre a prisão de condenados em segunda instância. “Foi uma decisão que acabou por selar um quadro muito favorável à operação”, escreve Corsalette. Ele registra que foi Gilmar Mendes quem barrou a indicação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro, destaca a estética duvidosa do power point de Deltan Dallagnol, a celeridade do processo e a mudança de voto de Gilmar Mendes, que, em 2018, se converteu em um dos mais duros críticos da operação. A escrita não se perde em meio a tantas reviravoltas e idas e vindas dos personagens citados. Antes, conduz o leitor para as consequências da Lava Jato.

O livro mostra como o jornalismo profissional pode ser capaz de tecer o presente

O melhor capítulo do livro é “Rupturas”, que detalha como o establishment político perdeu o controle da situação. Corsalette destaca como a palavra ruptura é um denominador comum desde junho de 2013 e enumera as diversas vezes em que a classe política olhou para o abismo — o que vinha acontecendo desde o governo Dilma. Adiante, fala das eleições de 2014 e da famigerada iniciativa do psdb, que pediu auditoria das urnas logo após o resultado do pleito. É preciso lembrar, como faz o autor, que esse período é marcado pela ascensão de Eduardo Cunha à presidência da Câmara (em 2015) e pela declaração de guerra deste político à Presidência da República. Como síntese dessa escalada para o cadafalso, Corsalette lança mão de uma tese pertinente: a presidente da República tentou salvar o projeto do pt no longo prazo, abandonando alguns aliados no caminho. Só que as consequências foram outras. 

Em contrapartida, o capítulo no qual o autor se dedica a falar da extrema direita é o mais frágil. Nele, diferentemente de outras partes do livro, as análises carecem de sustentação mais robusta. O repertório que fundamenta a discussão oferece parca compreensão do fenômeno social do alinhamento ideológico da sociedade brasileira. Mesmo assim, o leitor que atravessar Uma crise chamada Brasil sairá mais inteirado acerca dos eventos que marcaram a história do país na última década. Os entrevistados e os trechos de livros e de artigos citados tão somente dão fôlego ao livro, que, de quebra, mostra como o jornalismo profissional, nas suas mais variadas formas, pode tecer o presente.

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.