Poesia,
Sobretudo o mar
Extensa antologia organizada por Eucanaã Ferraz reúne poemas da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen
20nov2018É no mínimo curioso ler uma antologia extensa de poemas de algum poeta consagrado sem quase nenhum poema de amor. Mas é isso o que ocorre em coral e outros poemas, de Sophia de Mello Breyner Andresen, coligido e prefaciado por Eucanaã Ferraz. Será que o antologista não se interessou por esses poemas ou será que a poeta não os escreveu?
Na verdade, não é nem uma nem outra a resposta. Se seguirmos o pensamento grego sobre o amor — e a poesia de Andresen é essencialmente clássica — pode-se dizer que todos os seus poemas são de amor. É como se os versos tivessem alcançado o estágio amoroso da philia, em que o objeto do amor é prescindível, porque ama-se gratuitamente, sem necessidade de um predicado. Como no livro de Mário de Andrade, também aqui amar é um verbo intransitivo.
E é mesmo da intransitividade que trata o livro. Quase tudo aqui é franqueado, desprovido de utilidade imediata ou localizável: ama-se sobretudo o mar, exclusivamente porque ele é belo. A natureza, sob a forma concreta do vento, das árvores, da luz, das manhãs. Ama-se os nomes das coisas, as palavras e a possibilidade que elas carregam de promover o silêncio; o ritmo exato do mundo, expresso rigorosamente nas sílabas poéticas, guardiãs do tempo: “(…) O vasto espaço da sílaba medida/ Inventa a ordem sem lacuna onde nada/ Pode ser deslocado ou traduzido” ou “a teoria ordenada das sílabas — portadoras limpas da serenidade”. Ama-se a inocência que, conclusivamente, a leva a detestar a falsa sabedoria: "É sábio hábil arguto informado/ Porém quando ele escreve/ As Ménades não dançam” e, significativamente, a inversão da fala derradeira de Jesus: “Perdoai-lhes Senhor/ Porque eles sabem o que fazem”. Ama-se as cidades — Lisboa, Brasília, Creta — e as pessoas — João Cabral, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa. Ama-se porque, para ela, a própria poesia é amar ou “viver a inteireza do possível”.
E é nesse possível que se constata, apesar da busca ideal pela imanência e de uma unidade perdida sonhada entre as palavras e as coisas, também a inevitabilidade do mal a penetrar a história e o tempo: “A civilização que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão”; “E no país de espanto e de tumulto/ Em mim se desuniu o que eu unia”. E, por exemplo, sobre a tortura no Brasil durante os anos 1970: “Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não”.
Dualidade
No excelente prefácio, Eucanaã Ferraz aponta para a inesperada consciência da dualidade que surge na poesia de Andresen, depois de um início idealmente dedicado à unidade entre os seres, entre os seres e a natureza e entre a natureza e as palavras: “Ao compor um título (Mar Novo) em que a renovação qualifica o elemento mais antigo e permanente de sua poética, Sophia lança luz sobre algum itinerário (…) mas também sobre a profunda relação que mantém com as coisas do mundo: a modificação não existe desligada da continuidade”. Mais tarde, e supreendentemente, a poeta lança um livro que atesta a perda da totalidade no próprio título: Dual. No poema “Data”, por exemplo, surge uma espécie de Eclesiastes ao contrário, pois não há oposição entre o tempo bom e o tempo difícil, mas apenas o tempo da angústia: “Tempo de solidão e de incerteza/ Tempo de medo e tempo de traição/ Tempo de injustiça e de vileza/ Tempo de negação”.
O silêncio, tão visado pela autora, é pré-linguístico, anterior à mítica separação entre coisas e palavras
O silêncio, tão visado pela autora (e por praticamente todos os poetas), é um silêncio pré-linguístico, anterior ainda à atribuição de nomes para as coisas, antes da mítica separação entre coisas e palavras. É como se a poesia, com seu ritmo que ouve o fluxo do mundo, restaurasse para nós essa cadeia perdida. Mas, dentro dessa dualidade inexorável, existe uma outra espécie de silêncio, não desejado, mas presente: o silêncio do vazio e da impotência. Não o silêncio da plenitude, mas o da ausência. Como em “Poema de geometria e de silêncio/ Ângulos agudos e lisos/ Entre duas linhas vive o branco”, mas o que resta é que “Nesta página só há a angústia a destruir/ Um desejo de lisura e branco,/ Um arco que se curve — até que o pranto/ De todas as palavras me liberte”.
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Nesta divisão entre o tempo histórico e cruel e o tempo da natureza, imponderável, é claro que sua poesia quer o último, mas, nem por isso, é uma poesia que ambiciona a eternidade. Sua busca é, ao contrário, pelo presente, como mostra essa Prece: "Que nenhuma estrela queime o teu perfil/ Que nenhum deus se lembre do teu nome/ Quem nem o vento passe por onde tu passas (…)”. Essa prece, como outras referências a algum deus nesta antologia, é dirigida a todos os deuses ou, talvez, a nenhum.
Entre pagã e agnóstica, sua voz é, como se disse, clássica, sem deixar de ser moderna. Sua transcendência está por aqui, no mistério da natureza autônoma e do tempo que passa sem se dar conta de nós. É uma espécie de “transcendência imanente”, apesar do paradoxo, porque as coisas por elas mesmas adquirem consistência sagrada e, por sua vez, o metafísico passa a acontecer por aqui mesmo, no mundo. Por isso não é pela posteridade que ela almeja, mas pela pequena lembrança e pela possibilidade de congratular-se com o real: “Como um fruto que mostra/ Aberto pelo meio/ A frescura do centro/ Assim é a manhã/ Dentro da qual eu entro”.
Para quem está esquecido de si, imerso na sequência vertiginosa dos fatos, perdido entre notícias que perderam o espanto, leia Sophia de Mello Breyner Andresen, pois com ela “Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos (…)/ Ressurgiremos ali onde as palavras/ São o nome das coisas”.
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