Poesia,

As sugestões de Brecht

Coletânea de poesias ajuda a compreender o complexo percurso de um dos principais nomes do teatro do século 20

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

Bertolt Brecht foi um artista de hábitos e gostos variados: admirador tanto das histórias de detetive de Chesterton quanto das peças históricas de Shakespeare; intenso consumidor de café, conhaque e charutos (sempre da marca Brasil, sua preferida); praticante atento de atividades intelectuais e jogos de estratégia, como o xadrez, além de exímio polemista com atuação constante na imprensa alemã; escrevia muito, constantemente, em todo pedaço de papel que pudesse encontrar e, ainda assim, achou tempo para uma grande quantidade de casos amorosos; adorava carros e tinha fama de excelente motorista; mas sempre se manteve desconfiado, como ele mesmo atesta em uma anotação autobiográfica de 1931: “Espero o pior de cada pessoa, até de mim mesmo — e raramente me enganei”.

Uma personalidade complexa como a de Brecht pede um trabalho de fôlego como Bertolt Brecht: poesia, publicado pela Perspectiva e organizado e traduzido por André Vallias, responsável também pela rica introdução e por um cuidadoso conjunto de notas explicativas. Apesar da vida curta (1898-1956), Brecht produziu em torno de 2.300 poemas, dezenas de peças de teatro e mais de oitocentas páginas de diários e anotações biográficas, além de vasta correspondência e mais de mil artigos sobre vários temas. 

Diante desse material, o livro traz uma seleção de trezentos poemas traduzidos e os originais em alemão. A edição é construída em ordem cronológica e geográfica, apresentando já no início um mapa que indica “a volta ao mundo em um único exílio”. Fugindo dos nazistas em 1933, Brecht vai para Dinamarca, Suécia, Finlândia e Estados Unidos, retornando à Europa depois da guerra e se estabelecendo em Berlim Oriental. A edição ainda conta com um conjunto de fotos de Brecht e de alguns dos lugares pelos quais passou, imagens que servem de vinheta visual a cada nova seção. 

Acompanhamos o autor desde suas primeiras anotações diarísticas, em 1913, até os últimos poemas e anotações na década de 1950. Brecht, que morre de um ataque cardíaco em 1956, já escreve em seu diário em maio de 1913: “Hoje a escola recomeçou. Tirei três em latim. Em alemão, no entanto, tive meu melhor desempenho com um. Tenho de novo problemas cardíacos!”. Existe a hipótese de que, por conta de uma infecção de garganta mal curada, o coração dele teria sido prejudicado já na infância. Na última anotação do volume, de 1954, consciente das limitações de saúde que o acompanharam durante toda a vida, Brecht escreve: “A namorada que eu tenho agora, e talvez seja a minha última, é muito parecida com a minha primeira”.

A fragilidade do corpo e da saúde nunca foi motivo de lamentação por parte dele, pelo contrário. Em um poema iniciado em 1922 e finalizado em 1925, “Do pobre B. B.”, Brecht explora com ironia as próprias debilidades:

De cara
fui recebendo a unção dos enfermos: jornal. E tabaco. E birita. Desconfiado
e preguiçoso e satisfeito no final.

E mais adiante:

Sim, sabemos que somos passageiros
E o que virá depois: não é digno de nota.

Por vezes Brecht vai da ironia a uma sorte de expectativa desesperançada, como neste breve poema de 1954:

Eu era triste quando jovem
Sou triste agora velho
Vou poder ser alegre quando?
Em breve, espero.

A resposta a essa pergunta parece dada indiretamente em outro poema do mesmo ciclo:

Eu não preciso de lápide, mas
Se for preciso uma para mim
Queria que nela estivesse inscrito:
Ele fez sugestões. 

Brecht desde cedo reconhece que a morte e a decrepitude são fontes constantes de imagens poéticas — algo que ele capta em suas leituras de Dante ou François Villon, por exemplo. Um poema de 1920, “Dos pecadores no inferno”, inicia com uma estrofe cuja rima é muito bem traduzida:

Os pecadores no inferno
Suam mais do que se atesta.
Quando choramos por eles
Lágrimas refrescam sua testa.

E no final do poema reconhecemos um dos pecadores:

Sob a luz vê-se Bert Brecht
Na pedra em que os cães mijam ao léu
Não tem água: todos creem
Que ele deve estar no céu.
Lá no inferno agora arde
Chorai pela alma dele, irmãos!
Ou de novo num domingo à tarde
Volta pra estender as mãos.

A morte espera a todos, parece dizer Brecht, é o fim da linha para aqueles que pisaram na Terra, do mais pobre ao mais rico, do mais sábio ao mais estúpido. 

Prece realista

Além disso, a morte espreita todas as atividades humanas, desde a mais banal — andar pela rua, tomar um trago com os amigos — até a mais dramática, como a guerra, tema central para ele. Observe como surge a Alemanha da Primeira Guerra Mundial em um poema do mesmo período:

Alemanha, loira, lívida
Fero-nubilosa de fronte serena!
O que se passou no teu insonoro céu?
Agora és o fosso de carniças da Europa 

Alemanha, loira, lívida
Terra do São Nunca! Plena de
Bem-aventurados! Plena de mortos!

Brecht foi um crítico à altura das ensandecidas aventuras de seu país. Já em 1923 ele é incluído na lista de inimigos do partido nazista por conta de um poema, “Lenda do soldado morto”, que conta a história do cadáver de um soldado que é levado de volta ao combate:

Com zelo o médico examina
O corpo à beira do jazigo:
‘Apto para o combate’ assina
‘Mas quer livrar-se do perigo’.

Depois do incêndio do Parlamento alemão, em fevereiro de 1933, Brecht corre sério risco de ser preso e foge, primeiro para Praga, depois Viena, em seguida Suíça e Paris. Em um poema de 1935, ele escreve:

No segundo ano de minha fuga
Li num jornal de língua estrangeira
Que eu perdera a minha cidadania.
Não fiquei triste nem satisfeito
Ao ler o meu nome junto a muitos outros
Bons e ruins.
A sorte dos que fugiram não me pareceu pior do que a
Dos que ficaram. 

O breve poema é revelador de uma série de traços típicos de Brecht, definidores de sua poética. Em primeiro lugar, a leitura de jornais, que realizava de forma diária e metódica — nisso seguindo as palavras de seu compatriota Hegel, para quem “a leitura matutina do jornal” é uma espécie de “prece realista”. Brecht recortava, montava e colava notícias de jornais em muitos de seus trabalhos, sobretudo naqueles que hoje conhecemos como O ABC da guerra e Diário de trabalho. Em segundo, a percepção de sua condição apátrida não levou à tristeza ou à satisfação, apenas à reflexão e à continuidade do trabalho. Por fim, nota-se certa desconfiança diante de julgamentos precipitados. Brecht busca manter em mente o maior número possível de perspectivas e experiências contrastantes, como mostra o poema “Uma casa nova” (1949):

De regresso após quinze anos de exílio
Eu me mudei para uma bela casa.
Dirigindo através dos escombros
Sou diariamente lembrado dos privilégios
Que me proporcionaram esta casa. Espero
Que isso não me deixe tolerante com os antros
Em que tantos milhares se abrigam. 

Eis uma divisa recorrente no trabalho de Brecht: não se permitir ser tolerante com a vicissitude de seu próximo, não se permitir ficar limitado à própria experiência. “Várias vezes ao dia/ Ouço no rádio as notícias da guerra/ Para me assegurar de que ainda estou no mundo”, escreve ele em um poema de 1940. E, ao mesmo tempo, Brecht é muito consciente de que sua própria experiência é sempre a primeira camada do trabalho artístico, a vanguarda no confronto com o mundo: “Somos agora refugiados na/ Finlândia./ Minha filha pequena/ Chega à tarde em casa xingando, nenhuma/ Criança quer brincar com ela. É alemã e descende/ De um povo bandido!”, escreve ele também em 1940. 

Eis uma divisa recorrente no trabalho de Brecht: não se permitir ficar limitado à própria experiência

Escrever é banal

Bertolt Brecht: poesia ajuda a melhor compreender a complexidade do percurso de Brecht, tão intimamente costurado a eventos históricos decisivos como o fascismo e o pós-guerra. Grandes pensadores se dedicaram a ler e interpretá-lo, como Walter Benjamin na década de 1930, Roland Barthes nas décadas de 1950 e 1960, Fredric Jameson na década de 1990, até chegar mais recentemente a Georges Didi-Huberman. 

Cada especialista encara uma faceta de Brecht, um ângulo determinado de uma obra vasta e inesgotável (repare que em nenhum momento até agora foram citadas suas peças de teatro). Trata-se de um artista cujo ritmo de trabalho beirava a obsessão e a mania e que, ainda assim, consegue escrever em seu diário, em maio de 1921: “A arte de escrever é a mais vulgar e banal de todas as artes. É aberta, clara e verificável demais”. Ou em 1925: “Hesito muito em me dedicar à literatura. Até agora, escrevi tudo com a mão esquerda. Escrevi quando algo me ocorria ou quando o tédio era forte demais. Se eu decidisse tentar a sorte na literatura, teria que fazer do jogo um trabalho. Dos excessos, um vício. A inspiração por meio do hábito manual e o desejo de trabalhá-lo”.

A hesitação nos surpreende, hoje, diante de sua obra. Não só o ritmo de trabalho de Brecht era vertiginoso, mas também sua capacidade de reinvenção da língua, seus neologismos, palavras-valise e contínua busca pelo efeito de estranhamento na linguagem, algo que o tradutor André Vallias reproduz muito bem em português. No poema de 1927, “700 intelectuais rezam a um tanque de petróleo”, Brecht faz um trocadilho com a palavra “Fortschritt” (progresso), mesclando-a com a palavra “Schrift” (escrita) e com o nome do magnata Henry Ford. O resultado é o verso “Des Fordschrift und der Statistik”, que em português se transforma em “Do dieselvolvimento e da estatística”. O livro é rico em achados linguísticos instigantes como esse, à disposição daqueles que quiserem encarar o mergulho no mundo de Brecht.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.