Poesia,

A genialidade de Emily Dickinson

O segundo volume das poesias completas da autora mostra como seu isolamento permitiu que tivesse o domínio da palavra

17fev2022

Quando dei início ao mergulho que seria a produção deste ensaio, pisei cuidadosamente no mundo de Emily Dickinson. Falamos aqui de um gênio, afinal. Não é raro encontrar acadêmicos e entusiastas no campo literário que comparam o talento de Dickinson ao de Shakespeare. Outro motivo para a minha cautela é a especulação constante em torno da autora, da sua vida e dos seus hábitos, ainda que o mais importante seja sua obra, enigmática e provocadora.

Contemporânea de nomes como as irmãs Brontë, George Eliot, Elizabeth Barrett Browning e George Sand, Emily Dickinson nasceu em 1830, a filha do meio de Austen e Lavinia, na cidade de Amherst, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, onde também cresceu e morreu, em 1886, aos 55 anos. Seus pais eram membros conhecidos e influentes de uma comunidade fortemente religiosa. É possível que, graças ao puritanismo da criação da poeta, a Bíblia tenha sido uma das maiores influências na sua poesia, inclusive no que diz respeito a referências de estrutura e métrica dos seus poemas. Em alguns versos, vemos uma suposta rejeição do paraíso e dos supostos privilégios divinos.

Tanto Céu abandonou a Terra
Que deve haver um Firmamento
Ao menos pra cercar os Santos
A darem Depoimento —

O Missionário no Porto
Deve provar que há um Céu
Alegando local indubitável Urgindo
[local]
Mas que desculpa terei Eu?

Ainda que Emily Dickinson tenha, eventualmente, questionado a imposição desse cotidiano cristão, sua criação e educação foram solidamente fundamentadas em leituras e ensinamentos bíblicos. Em alguns versos, faz críticas cortantes e sagazes de quem tem inquestionável propriedade e estudo sobre o assunto, como nestes versos da seção dos Poemas Soltos:

Diagnóstico da Bíblia, por um Garoto —
A Bíblia é um Tomo indizível
Escrito por Homens ignotos —
Guiados por santos Espectros —
Assuntos — Belém e Nazaré —

A Gênese — Ancestral de Belém —
Satã — o Opositor —
Judas — primeiro Inadimplente — grande [Infrator]
Davi — o Trovador —

Pecado — distinto Precipício —
Mas aqui eu já desisto —
Garotos crentes — solitários —
Outros — perdidos de Cristo —

Além da Bíblia, outra grande referência foi Shakespeare, que influenciou os elementos literários de seus poemas.

A bela edição bilíngue, publicada pela Editora Universidade de Brasília e pela Editora Unicamp, que reúne folhas soltas e perdidas de Dickinson, segue o lançamento do primeiro volume da obra da poeta no fim de 2020, com notas, prefácio e tradução impecável de Adalberto Müller, professor de teoria da literatura na Universidade Federal Fluminense e membro da Emily Dickinson International Society.

Um quarto todo seu

Este volume nos coloca frente a frente com a genialidade da poeta, cuja obra nos entrega uma infinitude de leituras e buscas. Circunda, na leitura de Emily Dickinson, uma melancolia quase inescapável. Uma poeta que foi repetidamente ignorada pela sociedade machista do século 19 parece ter encontrado a liberdade da criação, paradoxalmente, trancada no seu quarto, seu território livre e seguro para explorar pensamentos, reflexões e construir poemas tão sensíveis quanto violentos.

Pensar na liberdade que teve Dickinson para criar sem interrupções no seu quarto nos faz refletir também sobre a vida privilegiada que teve a poeta. No século 20, Virginia Woolf escreveu sobre a necessidade da mulher de ter um espaço próprio para exercer sua criatividade. É interessante, portanto, fazer um caminho de volta a partir do conceito cunhado pela autora britânica para pensar no processo solitário de criação de Emily Dickinson. Como se, no século 19, a poeta já praticasse a teoria de Woolf na sua essência: uma mulher, para escrever, precisa de paz, dinheiro e um espaço todo seu. Dickinson teve precisamente esses elementos à disposição para escrever em reclusão e com completa liberdade. Liberdade financiada pelos pais, pela família e pelo seu próprio talento.

Uma poeta que foi repetidamente ignorada pela sociedade machista do século 19 parece ter encontrado a liberdade da criação, paradoxalmente, trancada no seu quarto, seu território livre e seguro para explorar pensamentos, reflexões e construir poemas tão sensíveis quanto violentos

Outro conceito de Woolf que está atrelado ao da liberdade de criação encontra-se em seu ensaio “Mulheres na ficção”, traduzido por mim e publicado na Capitolina Revista, no qual comenta seu desejo de ver cada vez mais poesia escrita por mulheres. Segundo Woolf, as mulheres escreviam mais romances porque era um gênero que se prestava à demora na sua feitura era possível escrever um romance enquanto se descascavam batatas ou se cuidava de um pai doente.

Mas a produção poética, segundo a autora de Mrs Dalloway, precisava de um comprometimento não só de pulsão e fluidez imediatas, mas de não interrupção no processo. Precisamente, Emily Dickinson gozou desse privilégio. Não só ela fez uso de um quarto todo seu, como sua reclusão e seu isolamento permitiram que sua escrita não fosse interrompida, resultando em uma produção profícua, generosa, fluida e constante.

Pensar na liberdade que teve para criar sem interrupções nos faz refletir sobre a vida privilegiada que teve a poeta

Esse autorrefúgio entre quatro paredes, que se tornaria seu mundo durante trinta anos, pode estar relacionado ao ofício e à seriedade na escrita de poemas e cartas. Havia, na produção literária de Dickinson, uma curadoria e um cuidado com as palavras que, por si sós, justificariam um interesse no isolamento que parte do desejo de cunhar e produzir versos de forma incansável e minuciosa.

Talvez como consequência desse compromisso e envolvimento com a língua e suas possibilidades, a poesia de Dickinson seja, até hoje, considerada fonte de um exercício complexo de tentativa interpretativa. Como se, feito a teoria de Roland Barthes em seu ensaio “O prazer do texto”, os versos de Dickinson provocassem o vacilo de bases psicológicas e culturais do leitor, causando incômodo em vez de euforia e conforto.

Manuscrito de Emily Dickinson para o poema número 11 das Folhas Soltas, presente em Poesia completa: volume 2 [Biblioteca Houghton, Universidade Harvard]

É interessante tentar entender o fascínio em torno da sua imagem de figura solitária, particularmente em uma época em que os distúrbios e complexidades mentais, especialmente das mulheres, eram vistos com profundo interesse, ainda que com considerável desconfiança e manipulação sociocultural. Apesar de se interessar por atividades consideradas coerentes com o conceito de feminilidade da época, como jardinagem, o olhar de Dickinson propunha o aprofundamento do simples. Portanto, a mera apreciação de flores e plantas passou a ter para ela, desde os nove anos de idade, um interesse científico. O aprofundamento do seu interesse pelo tema da jardinagem deu lugar à botânica, fazendo com que ela compusesse um herbário.

A temática da loucura ronda boa parte do segundo volume de Poesia completa, tratando de liberdade, esconderijo, plenitude e identidade. Para a poeta, a própria percepção da loucura que os outros identificam dá a ela a oportunidade de libertação. Nas Folhas Soltas, número 11, ela aprofunda esse assunto com inquestionável propriedade:

Como se refaz a Doença —
Na Mente convalescente,
Seu escrutínio de Chances
Por benta Saúde obscura —

Como se anda em Precipício
De novo, ou se talha o Galho
Que O salvou da Perdição
Semeada à beira do Abismo

Um Costume da Alma [Um] hábito
Bem depois de ter sofrido
Identificar para questionar [para] negociar
Para saber do ocorrido —

Nesses versos, podemos perfeitamente concordar com algumas propostas de intepretação que associam o poema a Rei Lear, de Shakespeare. A imagem do penhasco nos leva a Gloucester e aos penhascos de Dover. A própria convalescença da mente é um estado permanente em Lear a partir do momento em que, paradoxalmente, recupera o juízo identificando a bondade e discriminando o amor do interesse. Quanto mais próximo está de entender a realidade, mais ele questiona a própria lucidez.

A inconstância psicológica, assim como a tristeza ou a promiscuidade, foram (e ainda são em algumas sociedades) as únicas alternativas para categorizar qualquer mulher que não obedecesse às regras de comportamentos preestabelecidas

Dickinson faz dessa passagem sua própria alternativa de familiarização com a loucura e a sensatez. É, aliás, o tema da marginalização feminina através da suposta loucura que permeia toda a condição da mulher dentro do patriarcado. Ou seja, a inconstância psicológica, assim como a tristeza ou a promiscuidade, foram (e ainda são em algumas sociedades) as únicas alternativas para categorizar qualquer mulher que não obedecesse às regras de comportamentos preestabelecidas. Dickinson também é, infelizmente, um perfeito exemplo da discriminação do gênero feminino no mercado editorial, pois foi rejeitada por inúmeros editores.

Desajuste social

O escritor americano Jerome Charyn, autor de The Secret Life of Emily Dickinson (A vida secreta de Emily Dickinson), faz uma observação muito pungente e comovente em relação à solidão e à reclusão da poeta. Ele comenta dois aspectos cruciais para o seu crescente desaparecimento do convívio social da época. Um deles é Carlo, o cachorro que Dickinson ganhou de seu pai aos dezenove anos e que vive com ela por quinze. Charyn também comenta que a escritora era a pessoa mais inteligente no seu círculo familiar e de amizades.

Tal intelecto privilegiado tinha como consequência isolamento, distanciamento e inadequação da poeta no convívio social muito prolongado. É crucial lembrarmos que Dickinson vinha de uma família privilegiada, sendo seu pai um advogado e seu avô um dos fundadores de uma faculdade em Amherst. Ou seja, tinha oportunidades de troca e estímulo intelectuais. Ainda assim, era ela o maior talento de todos, e, por consequência, era ela, aos olhos dos outros, a inadequada. Carlo foi, por isso, o companheiro da poeta, detentora de um brilhantismo acadêmico e cognitivo, ao mesmo tempo que apresentava um aspecto de desajuste social.

Estando inserida num tempo em que a poesia escrita por mulheres era, na melhor das hipóteses, enfadonha ou sonhadora, temática de salas de estar, a marginalidade e o estranhamento de Dickinson, no sentido da impossibilidade dos outros em conceituá-la, pautaram o desconforto da academia e da crítica masculinas diante da originalidade e da quebra da previsibilidade na sua poesia. No livro The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination (A louca do sótão: a escritora e a imaginação literária do século 19), de 1979, Sandra Gilbert e Susan Gubar apresentam uma passagem sobre esse ponto de divergência masculina no século 20 entre a qualidade e a originalidade na poesia de Dickinson e o despreparo e dificuldade dos críticos e acadêmicos em lerem o que de espantoso aquela experimentação trazia. Um deles, R.P. Blackmur, chega a escrever na década de 30 que Dickinson não era nem uma poeta profissional nem amadora, mas sim uma poeta particular, em atividade incansável, assim como algumas mulheres cozinham ou fazem tricô.

O equívoco vergonhoso dessas figuras que controlavam o mercado editorial da época e decidiam qual texto era considerado de qualidade teve impacto direto na produção de Dickinson. Essa dificuldade se prolongou após a sua morte. Há um ensaio do crítico, poeta e ensaísta americano John Crowe Ransom em que ele assegura a seus leitores que, da vastíssima coleção de poemas escritos por Dickinson, um em no máximo dezessete seria digno o suficiente de alcançar popularidade.

Os versos de Dickinson pareciam prever o futuro, passando a limpo sua invisibilidade, mas com a perspicácia, sagacidade e ironia características do seu brilhantismo:

Fui uma Phebe — nada mais —
Uma Phebe — nada menos —
A notinha que outros largavam
Eu arranjava —

Escondida, ninguém nota —
Tímida, ninguém chama —
Uma Phebe nem deixa marca
Na Calçada da Fama —

O que ela acabou se tornando foi o oposto da sugerida insignificância de Phebe. Se ela soubesse quanta fama deixou em suas pequenas notas… A vida parecia mesmo território pequeno demais para Emily Dickinson.

Quem escreveu esse texto

Nara Vidal

Escritora, é autora de Mapas para desaparecer (Faria e Silva), Eva (Todavia) e Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare (Relicário).