Poesia,

A criação do imaginário ocidental

As “Metamorfoses” de Ovídio ganham tradução integral para o português, e em versos

09nov2018

Além de ser um clássico da literatura latina, Metamorfoses, do romano Públio Ovídio Naso (43 a.C.-17/18 d.C.), é um dos mais maravilhosos e mais estranhos poemas jamais escritos. A princípio, essa longa peça, composta de quinze seções, inscreve-se no gênero das cosmogonias, comum na Antiguidade clássica, dedicado ao relato da origem das coisas, do mundo, dos deuses, dos animais, do homem. E a primeira seção da obra de fato confirma essa expectativa:

Antes do mar e da terra, 
e do céu que tudo cobre,
era uniforme em todo orbe 
o aspecto da natureza.
 

Mas o leitor logo percebe que a narrativa que se segue, que vai “da origem do mundo a nossos dias”, corresponde à armação de um grande palco sobre o qual irão se desenrolar “as metamorfoses dos seres em novos corpos”. Surgem então, em série, personagens míticos, deuses e heróis, pastores e marinheiros, habitantes de uma natureza rústica e bela, desenhada por Ovídio com uma economia de meios que torna ainda mais admirável o efeito obtido por ele. 

São personagens que conhecemos bem: Júpiter e Juno, Apolo e Diana, Baco, Narciso, Eco e tantos outros, que vêm da mitologia grega e vão para toda a tradição literária que se estabelece na Europa ocidental com o fim do Império Romano. O papel de Ovídio na transmissão dessas histórias e personagens não é desprezível, e pode-se tributar à maneira leve e agradável desse poeta a fixação de muitos deles no imaginário ocidental. 

Da filosofia e da literatura dita “séria” à sátira e às histórias infantis, boa parte do que se tomou, ao longo dos séculos, por “mitologia antiga”, vem tanto do contato direto com as fontes gregas originais quanto com a obra deste que foi um dos grandes escritores do “século de Augusto”, período que, para muitos, representa o apogeu da literatura latina, com o florescimento de Virgílio, Horácio, Tito Lívio e do próprio Ovídio. A presença das obras de Ovídio em geral, e das Metamorfoses em especial, se faz sentir na literatura medieval, na obra de Shakespeare e mesmo na literatura moderna. Na língua portuguesa, as Metamorfoses são uma referência pelo menos desde o século 18, graças à bela tradução, por Bocage, de algumas de suas passagens mais conhecidas.

Por essas razões, devemos saudar a publicação em português desse poema extraordinário, ao que eu saiba pela primeira vez, no Brasil, na íntegra. Esta edição bilíngue, organizada por Domingos Lucas Dias, que também traduz o texto, é exemplar em mais de um aspecto. Além de trazer o poema em versos, e não em prosa, como não raro acontece com as obras de Ovídio em português, realiza a expectativa do tradutor de ser a um só tempo “fiel e vernácula”, ou seja, servindo tanto aos eruditos como ao público em geral. O aparato crítico traz as referências e marcações fundamentais de que o leitor precisa, e satisfará os especialistas; a apresentação de João Angelo Oliva Neto, ao mesmo tempo em que oferece uma breve introdução ao poema, situa as Metamorfoses na história da literatura antiga e aponta para desdobramentos mais recentes de sua recepção.

Com isso, temos uma edição que, por ora, pode ser considerada definitiva e que vem se juntar às boas traduções de outras obras de Ovídio no Brasil (com destaque para os Fastos, publicados pela Autêntica, tradução de Márcio Gouvêa Jr.; e Poemas do exílio e da carne, vertidos por José Paulo Paes, Companhia das Letras).

Motivos para ler hoje um poema escrito há mais de 2.000 anos não faltam, e certamente não se reduzem à suposta obrigação de conhecer os clássicos. São múltiplos os encantos oferecidos pelas Metamorfoses. Que se tome, por exemplo, o episódio envolvendo a deusa Diana e o nobre caçador Acteão, filho de Cadmo, narrado entre as linhas 155-253 do Livro 3. Diana acaba de retornar a seu retiro, que se encontra numa região recôndita do vale consagrado a ela. “Cansada da caça, ali costumava a deusa das florestas/ banhar seu virginal corpo com a límpida água”, vertida sobre ela, enquanto caminha despreocupada, pelas ninfas que as assistem. São estas que de súbito percebem algo errado. “As ninfas, ao verem um homem, começaram a bater no peito nu,/ enchendo todo bosque com seus repentinos gritos/ e, em círculo, velam Diana com seus próprios corpos”.

O pano cai e a cena de contemplação se encerra, para a surpresa da imaginação da leitora ou do leitor, que já começavam a cogitar as formas do lindo corpo proibido a nós, mortais, incluindo o jovem Acteão. Mas, diferentemente dele, temos o privilégio de não receber da deusa o devido castigo pela violação das leis dos deuses que regem o Cosmos. Pois o que se segue, no poema, é a terrível cena da metamorfose do pobre Acteão, que, por força da ira de Diana, é transformado num veado e, não bastasse essa humilhação, é devorado por sua própria matilha de cães.

A violência inscrita nesse episódio é recorrente nas Metamorfoses, mas não chega a causar repulsa no leitor. Isso se explica. A descrição bela, o erotismo de surdina, o momento em que sobrevém a crise, a ruptura que ela instaura, a aceleração da narrativa, o desfecho violento — tudo isso não apenas dá ao leitor uma noção do gênio retórico do poeta, como também, e principalmente, faculta o acesso à ideia central do poema. Pois se trata aí de mostrar, com recursos formais, através do movimento, do ritmo e da escansão dos versos, o processo mesmo da metamorfose, que nada mais é que a transformação perpétua que governa o mundo da vida, não só humana, mas da natureza como um todo. 

Confundem-se assim os limites entre natureza e arte, que, agora entendemos, são, na verdade, ilusórios. A esse respeito, Ovídio é generoso com seu leitor, a ponto de inserir, logo no início do episódio em questão, uma observação aparentemente casual, mas profundamente filosófica, a propósito da gruta de Diana: “formada sem qualquer artifício./ A natureza, com seu engenho, tinha imitado a arte…”. Quem mais, senão os clássicos, poderia nos mostrar uma ideia tão rica como essa, e fazê-lo de maneira tão despretensiosa? É tempo de render a Ovídio a justa homenagem de nosso deleite com seu poema.

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).