Poesia,

Pequenino alvoroço

Poema de escritora franco-americana teve origem em viagem pelo Nordeste do Brasil

28nov2018

Hotel Península Fernandes. Sempre que Manuel Bandeira via esse nome escrito numa tabuleta “sentia não sei que pequenino alvoroço”. Seu primo tomou a iniciativa de perguntar ao proprietário o motivo dessa estranha escolha. O homem, um português “sem nenhuma fumaça de literatura”, respondeu: “Muito simples. Fernandes porque é meu nome, e P’nínsula porque é bonito!”. Bandeira, que conta essa anedota para falar da força inapreendida da poesia, encontrou uma explicação para o nome do hotel, mas não para a emoção que sentia sempre que via a inscrição: essa permaneceu misteriosa. 

“O inferno é verde.” A franco-americana Leslie Kaplan inicia os versos de seu livro com a chegada ao Recife e essa frase que ela viu em um muro. O que o grafite despertou na poeta é da ordem do pequenino alvoroço descrito por Bandeira: com essa combinação de palavras, uma maquininha adormecida é ativada e começa a girar para criar um poema. 

Importam menos os significados da frase no muro e mais a sua repetição contínua a cada estrofe. Ela se torna um refrão que conduz os versos, de onde eles partem e para onde voltam. Daí, outras imagens (além do inferno) e cores (além do verde) são despertadas: o “azul maciço/ do céu”, “as onças-pintadas”, “o mar azul/ o feijão preto”; “terra que desaba”, “gente comendo rato”, Hannah Arendt e o isolamento, “o caráter dúbio das coisas”.

O longo poema que dá título ao livro é seguido de outro menor: “As palavras (escrever, literatura e sociedade)”. Em ambos a tradução mantém um sotaque estrangeiro. O livro assim abre uma brecha para que nós, leitores brasileiros, possamos espiar o Brasil com olhos de alguém que o vê de fora. A palavra “favela” é escrita entre aspas; os versos de Vinicius vêm também em francês. “L’enfer est verde” ou “O inferno é vert”.

Nascida em Nova York em 1943, Leslie Kaplan cresceu na França. Como poeta e como ensaísta, ela aproveita essa condição dupla para trabalhar à procura de um ponto no qual as línguas se encontram — que pode estar “lá no fundo/ da boca”, “ou então na superfície/ a ponta da língua”. Os versos que cito agora são do poema “Translating is sexy”, traduzido por Marília Garcia e mencionado por Zéfere, tradutor d’O inferno é verde, na sua nota ao final do livro. E essa oscilação de Kaplan — em busca de um ponto que está no fundo ou na superfície — pode ser uma síntese da forma como ela escreve.

O que move poemas como esse não são explicações; são motivos. Esses motivos são o que mantêm as engrenagens dos versos em funcionamento. Porque eles sempre retornam, as ideias não se detêm em si mesmas, mas estão sempre saindo. A direção não é para baixo, para o fundo; é um passeio de dentro para fora e de fora para dentro, que segue e deixa que as imagens tragam outras novas. 

A máquina associativa parte de um ponto, traça uma curva, retorna a esse ponto, traça mais uma curva — e compõe, aos poucos, não uma linha, nem um caminho, mas um desenho.

O ritmo acelerado do poema é também o que permite uma rotatividade de citações e de referências. Também o inglês, o francês e o português convivem e se traduzem. Do mesmo modo que não sabemos por que a frase no muro se tornou o refrão, também não é explicável o surgimento de palavras em inglês aqui e não ali, ou a ocorrência desta e não daquela referência. É mesmo misterioso o trabalho do pensamento. E, como uma lupa que aumenta outra lupa, a investigação desse livro examina o pensamento para examinar o mundo.

Grafites e poemas

“Quem é você, palavra,/ e o que é que você quer dizer”, o poema pergunta. “E o inferno, será que se agarra o inferno/ não, não se agarra, se experimenta/ como é que se faz para experimentar sem conhecer?” O Brasil, visto por uma estrangeira, talvez possa ser um desses pontos de encontro entre o fundo e a superfície da língua: um país cheio de contradições que abre espaço para outras experiências possíveis. 

Entre os grafites no muro, “sol e beleza/ sol e dureza”, “o bairro negro do Pelourinho/ […] onde os escravos fugidos eram enforcados/ e onde agora se dança”, a única forma de conciliar tantas imagens é por meio de um fluxo contínuo e desprendido, fora da lógica. Pequeninos alvoroços nos levam a regiões que nós não conhecíamos: experimentamos essas regiões, e elas permanecem desconhecidas.

Quem escreveu esse texto

Leda Cartum

Escritora e roteirista, é autora de O porto (Iluminuras).