Poesia,

Antídotos do nada

A perda e a despossessão marcam os poemas de nova coletânea de Paulo Henriques Britto

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Seis anos depois de Formas do nada, Paulo Henriques Britto retorna à poesia, fiel às formas fixas, em pleno acordo com o verso de W. H. Auden: “Benditas todas as regras métricas que proíbem respostas automáticas”. O título da nova coletânea, Nenhum mistério, aponta duas linhas temáticas, que se entrelaçam: por um lado remete diretamente ao poema “A arte de perder”, de Elizabeth Bishop, vertido para o português pelo poeta (“A arte de perder não é nenhum mistério./ Tantas coisas contêm em si o acidente/ de perdê-las, que perder não é nada sério”). 

Por esse veio, o poeta dá notícias de seu aprendizado da despossessão, marcado pela fatalidade e pelo envelhecimento. Mas o título também evoca o Alberto Caeiro de “O Mistério das coisas, onde está ele?” e seu célebre dístico “o único sentido oculto das coisas/ é elas não terem sentido oculto algum”. Explicitar o autoengano nas formas pelas quais se pretende dar sentido ao nada é um dos procedimentos recorrentes na obra de Paulo Henriques Britto, que, ao seu modo, é também discípulo da metafísica negativa do mestre dos heterônimos pessoanos.

Nenhum mistério abre com a série “Nenhuma arte”, contendo seis poemas em variadas formas fixas, modulando o tema da despossessão, tendo por centro a morte do ser amado — “único antídoto do nada” — pela qual se aprende “a cruel lição”: “a que não é arte/ nem tampouco ciência/ pois não há teoria —/ só práxis — da ausência”.

Destaque aqui para a terceira peça: em ritmo anafórico, rememora-se o cotidiano simples como dádiva perdida — “e isso nenhum de nós nunca entendia,/ e era dia claro, e isso nenhum/ de nós via, como se fosse noite./ E isso bastava. Não havia mais/ que a sucessão que não cessava” —, versos que dialogam com o belo “Acalanto”, de Macau (2003), em que, “noite após noite”, o poeta via a si e à amada “despidos de projetos e passados/ fartos de voz e verticalidade/ contentes de ser só corpos na cama”.

O envelhecimento e a perspectiva da própria morte são temas que ecoam aqui e ali em Nenhum mistério. Informam, por exemplo, a cena em “Mirante”, soneto em decassílabos no qual o poeta lança um olhar ao que “sobreviveu à dor,/ à confusão, à culpa, aos disparates”. Desse mirante, a revelação é amarga: o desapontamento é o único afeto a juntar os cacos da existência, assegurando coerência ao conjunto do passado, pois “a decepção, arrematando os anos,/ é o que há em matéria de sentido”.

Estoicismo

Essa revelação por vezes conduz a um estoicismo, fundado no desapontamento, derivando na satisfação pela mera presença. Nos quartetos do soneto “À margem do Douro”, um dos melhores poemas da coletânea, chega-se por essa via a uma espécie de iluminação. “Não espero nada, e já me satisfaço/ com a consciência de ainda estar em mim/ e não de volta ao nada de onde vim./ Por ora ainda ao menos ocupo espaço,/ junto a uma mesa no Cais da Ribeira;/ permito-me, sem culpa, desfrutar/ de pão, e queijo, e vinho, e vista, e ar, todo o entorno da minha cadeira.” 

O poeta retoma a sua atitude filosófica básica: o reconhecimento de que tudo é, ao fim e ao cabo, nada, mas que é preciso mover-se dentro desse nada

É um tema que já se fazia presente em Macau, ora visto pelo prisma da insularidade exasperante (“Tão limitado, estar aqui e agora,/ dentro de si, sem poder ir embora”, como se lê no segundo dos “Sete Sonetos Simétricos”), ora pelo relaxamento libertador (“O hábito de estar aqui agora/ aos poucos substitui a compulsão/ de ser o tempo todo alguém ou algo”, como se lê na última das “Três Epifanias Triviais”). “À margem do Douro” parece sintetizar esses dois sentimentos: nos quartetos, acena para o relaxamento; nos tercetos, recupera as preocupações do “cais úmido e ínfimo do eu”, ao pedir “Que os dias que me restam não me tragam/ apenas a miséria de contá-los”.

Outra peça-chave é “Nenhum mistério”, série homônima em que o poeta retoma aquela que pode ser descrita como sua atitude filosófica básica: o reconhecimento de que tudo é, ao fim e ao cabo, nada, mas que é preciso mover-se dentro desse nada, premissa que o autor explora às vezes com menos, às vezes com mais força expressiva — neste último caso, como quando descobre “um símile/ cru e exato/ como comer após cuspir/ no prato”. Ou quando relê Drummond e sugere que “é mister que se aproveite/ o que se tem, por mais daninho,/ que da pedra que há no caminho/ se extraia o leite”.

Brilha o soneto noturno que fecha a série, em que a noite surge como uma casa “por fim construída”, onde “os cômodos esperam o raiar/ de alguma coisa como um dia. Ou não”. Aqui, a cena sugere a antecâmara de um desastre: em vez da “casa limpa/ a mesa posta,/ com cada coisa em seu lugar”, da “Consoada”, de Bandeira, há os “livros entulhados/ de palavras que escorrem devagar/ formando umas poças ralas no chão”.

No centro da coletânea, a série “Caderno” — poemas metalinguísticos, com variações sobre as labutas do fazer poético. O leitor familiarizado com a poesia de Paulo Henriques Britto sente nesse ponto, sobretudo nas estâncias mais fracas, certa repetição temática que cansa pela banalização, crítica da qual o poeta parece já se precaver desde o primeiro sonetoide manco de Macau: “Naturalmente, sei que isto é banal,/ e que o sabê-lo é mais banal ainda”. 

A peça seguinte, não obstante, trata de tema similar e o faz de maneira magistral: “Tocata”, em que a fuga é a desse real “que resiste a todo chamado/ e insiste em não sair da zona escura” — o real selvagem, “toupeira ou furão”, que solapa as fundações da vida e não dá nem satisfação nem consolo.

Ora encarnando a despossessão, ora flertando com o humor (“Heraclitus meets Pascal”) — humor, contudo, sem alegria, próximo à ironia enfastiada de Machado de Assis — ou, ainda, revisitando temas caros à sua poética, Britto entrega mais uma safra de poemas que, em geral, primam pela mescla entre rigor formal e conceito inusitado, que fisgam o leitor e por vezes o acertam feito “ponta rombuda de lança/ cravada onde é difícil o acesso/ ao mundo do que eu perdi”. Pois todos, afinal, perdemos.

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.