Editora 451,

Ser poeta, ser palestino

Mahmud Darwich, um dos mais importantes autores da Palestina, ganha uma tradução à altura da sua prosa poética

01dez2020

“Ele era o príncipe das palavras e seu nome era Mahmud Darwich.” Com essa afirmação, Elias Khoury, o autor de Porta do sol (Record, 2008), definiu o poder das palavras saídas da pena de Mahmud Darwich (1941-2008), seu amigo e companheiro de lutas políticas e sociais. A obra do poeta nacional da Palestina ainda é pouco conhecida no Brasil, salvo a tradução realizada por Paulo Daniel Farah em A terra nos é estreita e outros poemas (Bibliaspa, 2012) e alguns poemas avulsos. No conjunto, seus trabalhos somam mais de trinta livros de poesia épica e lírica e de prosa, resultante de artigos políticos e militantes veiculados na imprensa literária e jornalística, sendo que algumas dessas publicações foram criadas e dirigidas pelo próprio Darwich. 

Após ser traduzido para cerca de quarenta línguas, finalmente surge uma edição brasileira de uma obra completa do poeta palestino: Da presença da ausência (do original árabe: Fi hadrat alghiyab), lançada pela editora Tabla, que tem se especializado, em poucos anos de existência, na publicação de obras literárias sobre o Oriente Médio e o norte da África. Traduzido de forma primorosa diretamente do árabe por Marco Calil, é precedido pela apresentação de Michel Sleiman, que, com Safa Jubran (ambos professores da Universidade de São Paulo), é responsável pela preparação do texto. 

Como aponta Sleiman, esse é “um último Darwich”, a última obra de três trabalhos finais sequenciados em prosa. Publicado originalmente em 2006, dois anos antes da morte do autor, esse livro pode ser considerado um ensaio autobiográfico, um epitáfio, uma poesia proseada ou uma prosa poetizada. Nele podem ser identificados o poeta, o prosador, o ensaísta, o jornalista, o militante, o político. O refugiado, o exilado, o retornado. Os que ficaram e resistiram, os que partiram e resistiram. O ausente e o presente. O palestino. Os palestinos.

O livro está dividido em vinte seções ou capítulos apenas enumerados sequencialmente, sem títulos, que não seguem uma ordem cronológica factual, posto que é um trabalho de construção de memória. É possível identificar dois grandes temas. O primeiro é o diálogo do poeta consigo mesmo, no qual ele trata de temas introspectivos como o amor, a saudade, a família, e mesmo de rotina, sono, insônia e pesadelos; a prisão, a doença do coração e a presença da morte, sendo ele o poeta que “escreve de próprio punho a história do teu coração”. 

O outro tema, certamente, é o diálogo com e pela Palestina (“quem contará nossa história”), com temas como a Nakba, Dayr Yasin, Sabra e Chatila, os Acordos de Oslo e suas decorrências: o refúgio, o exílio, o retorno, a resistência, sendo ele o poeta que “escreve de próprio punho a história de tua raça”. Ser poeta é ter o poder de usar as palavras, poder mais eficaz que a força das armas, e, como ressalta Darwich, não se trata apenas de ser poeta, mas sim de ser poeta palestino: “o que quer dizer um poeta ser palestino” — a resposta: “ser fruto da História” —; e o que quer dizer um “palestino ser poeta” — “ser vítima da História”.

Poeta da resistência

Darwich pode ser considerado herdeiro dos chamados “poetas da resistência” ou “poetas da terra ocupada”, movimento surgido nos anos 1950 e 60 que teve como precursores Tawfiq Zayyad, Samih al-Qasim, Fadwa Tuqan, Muin Bseiso e Emile Habibi. Nascido em 1941, na aldeia de Birwa (região de Acre), na Palestina sob mandato britânico, o segundo de oito filhos de uma família de pequenos proprietários de terra, Mahmud Darwich viveu as decorrências diretas da Nakba de 1948, quando 750 mil palestinos foram expulsos de sua terra. 

Fugindo da ocupação para o vizinho Líbano, a família retornou clandestinamente para constatar que sua aldeia tinha sido destruída e que, sobre suas ruínas, surgiria um de muitos assentamentos judaicos (“como uma ou duas chacinas, o nome de nossa terra, nossa terra, mudou de cor. o real virou história e a memória está morta”). Na condição de deslocado interno, de ausente-presente, e enquadrado na Lei da Propriedade Absenteísta, a família Darwich instalou-se secretamente em Dayr al-Assad, vila árabe na região da Galileia, tendo que criar estratagemas para escapar das “hienas” (os guardas de fronteira), viver no silêncio e na escuridão, em uma “casa improvisada” para sete sonhadores privados de nome e de alimentação. Mas não de memória: “e você com sete anos nas costas tem lá memória? Ao que dizes: sim… Ele lembra de coisas insuportáveis para a idade”.

A perda da infância veio acompanhada da memória e da consciência do ser e do não ser, da ausência e da presença, do lembrar e do esquecer, do passado e do presente. Quando puderam atravessar o limbo da ausência-presença e justificar a não participação no recenseamento realizado pelas autoridades israelenses (“inventaram história: retornamos. inventaram nossa história: retornarmos ao deserto”), a família pôde tornar-se palestina com cidadania israelense, o que também permitiu a Darwich concluir seus estudos em Kafr Yasif e partir para Haifa, norte do país. 

Sofrendo do “mal do presente” e vendo a “história como um ladrão destemido”, Darwich tornou-se um poeta palestino ou um palestino poeta aos dezenove anos de idade, com a publicação em 1960 de seu primeiro livro de poemas, Pássaro sem asas. A falta de documentação que lhe permitisse ser reconhecido como cidadão pleno no novo país é a inspiração para o seu popular poema “Carteira de Identidade (“Toma nota!/ Sou árabe/ O número da minha carteira de identidade: cinquenta mil./ Número de filhos: oito…”), parte da obra Folhas de oliveira, de 1964, ano a partir do qual passou a ser reconhecido como uma das vozes da resistência palestina, ainda que tenha declarado em documentário de 2014 não gostar “de ser o representante do povo palestino, porque dificilmente me represento a mim próprio”.

Entre 1961 e 1967, engajou-se definitivamente na militância política, usando seus poemas, comentários e artigos para denunciar o drama palestino e reivindicar a pátria e a identidade de seu povo. Isso lhe valeu diversos períodos na “prisão que é densidade”, que é ausência da luz, das montanhas, do mar, das árvores, do cheiro de café preparado pela mãe, e que é a presença da solidão e da privação. No diálogo imaginário com seu carcereiro, Darwish declara: “tu e não eu é quem perde. quem vive de privar a luz aos outros acaba se afogando nas trevas da própria sombra. nunca te livrarás de mim”.

Exílio

Uma viagem à União Soviética em 1970 e o período de estudos de um ano na Universidade de Moscou determinaram sua opção pela partida, pela busca do refúgio e pela vida no exílio, à custa de dúvidas e incertezas: “te afastaste para te aproximares ou te aproximaste para te afastares?” O exílio foi a decisão entre a condição de “ser um estrangeiro exilado a ser forasteiro em casa”. No Cairo e em Beirute, onde se radicou desde 1972, vinculou-se à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e à luta política, tendo permanecido na cidade até a invasão israelense e os decorrentes massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila — ocorridos entre 19 e 20 de setembro de 1982, em meio à Guerra Civil do Líbano (1975-90) —, na fatídica noite silenciosa de gritos ensurdecedores e iluminada “para que os assassinos pudessem ver os olhos de suas vítimas sem perder o instante de supremo gozo na mesa de abate”.

Expulso do Líbano e sem poder retornar a Israel por suas ligações com a OLP, Darwich percorreu a rota do exilado: Egito, Tunísia, Chipre, Suíça e França, até encontrar a resposta para a pergunta: “haveria um país que me aceitasse?”. Na descrição do aeroporto, Darwich nos apresenta a metáfora do não lugar (“como se o aeroporto fosse a terra natal dos expatriados”), da condição do refugiado (“os que tiveram as raízes arrancadas da terra”), do exilado (“és de lugar nenhum”), do apátrida (“aquele que nasceu em uma terra que não existe… que nem existe”), do não importar (“ninguém me pergunta ‘quem é você?’”), do não ser (“persona non grata”), do não estar (“onde estou eu?”).

Afinal do que se trata o exílio? Como descrevê-lo? Para Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (Companhia das Letras, 2003): “O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada” e mesmo que romantizada, heroicizada e glorificada, “eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação”. Também para Darwich “o exílio não é odisseia, ida e volta; não é nostalgia, não é o amar o pôr do sol”, no entanto é uma estação (o outono), um sentido (“o cheiro das cidades, da saudade de alguém, da memória de outro cheiro”), uma solidão (“abrindo cartas vazias”), é o olhar para trás, é a receptividade “à diferença e à mútua convivência”. Ao exilado resta viver a saudade, pois saudade é “privar o exilado do exílio”. Saudade que é “som do vento, fusão de fogo e água, febre, cheiro, começos, visita da noite, cicatriz no coração, repetição de memórias, embelezamento, dor saudável, esperanças e paixões, alegria ausente”. Mas não se sente saudade “da dor, do medo, do luto”. 

O exílio foi a decisão entre a condição de ‘ser um estrangeiro exilado a ser forasteiro em casa’

O retornado é uma pessoa diferente daquela que nasceu no exílio, pois é aquela que retorna ao lugar de onde se retirou; o exilado nasceu fora do seu lugar. Num exercício de aliteração, Darwish declama: “retirantes são retornados retornando e retornados são retirantes se retirando”. Mas o exílio e a condição de exilado se rompem com a possibilidade do retorno? O que sente aquele que retorna? O que ele pensa? O poeta deixará de escrever se não mais estiver no exílio? O exílio é o ser? A despedida do exílio se dá com sentimento de melancolia, e o retorno (daqueles que à casa tornam) ocorre “sem entoar hino”, mas beijando a terra e abraçando as árvores com a oportunidade de ver “o nascer do sol do sentido-leste, não do sentido-exílio”, de tocar a lã das ovelhas, de desfrutar do aroma da rosa, do gosto da amora, da romã, da cereja, do damasco… Lembrar-se da terra é uma forma de resistência, de criar memórias que se enraízam e que jamais cicatrizam; memórias como “cartografia”, como “museu pessoal”. O retorno é a outra face do exílio, pois “por mais longe que vás, mais perto ficarás/ por mais que te mates a viver, (re) tornarás”.

Retorno

O desejo do retorno se concretizou em maio de 1996, tendo chegado tardiamente para o encontro com o poeta Emile Habibi, que “ficou por Haifa” e morreu em 2 de maio daquele ano antes que pudesse vê-lo. O encontro-desencontro levou Darwich a ponderar “e se eu tivesse por Haifa? e se eu tivesse ficado por aí? e se? e se não?”. E de duvidar de si mesmo: “questionei a mim próprio: quem sou eu?”. A presença do passado e a ausência do presente confrontam aqueles que retornam: por que não ficou? por que retornou? Como responder à provocação materna: “precisava teu amigo morrer para eu poder te ver?”. O retorno é rever a mãe e ser recebido “como um cavaleiro retornado de uma odisseia lendária”; é visitar o túmulo do pai e rememorar que o “rei derrubado” garantiu aos filhos pão e livros; é ser reconhecido por aqueles que ele próprio não conheceu.

Com autorização para se instalar na Cisjordânia, tendo rompido com a olp desde a assinatura do “mal definido” Acordo de Oslo em 1993 (um acordo que “não é melhor que nada”), Darwich viu a cidade ser violentamente atacada pelas tropas de Ariel Sharon e passou a viver entre Ramallah (Cisjordânia) e Amã (Jordânia). Continuou escrevendo, usando o poder das palavras dos seus poemas para confrontar o “trator da História”, cobrar dela um pedido de desculpas aos “mortos novos e antigos”, para falar do exílio, do enraizamento, do desenraizamento e da “afirmação da imortalidade do direito do retorno”.

No retorno não o esperava um amor. Um amor clandestino vivido na juventude com uma judia foi interrompido pelos acontecimentos de 1967. Um amor-relâmpago com a síria Rana Qabbani, dezesseis anos mais jovem, resultou em dois breves casamentos e dois rápidos divórcios, pois “amor é uma paixão que esmorece e arrefece, vem e vai”; preferível é “o amor morrer do coração, no auge do desejo e da paixão”. Um amor presente e ausente, um sentimento que é “ausência de densa presença, os dois ausentes, os dois presentes”. 

O coração doente, não de amor, foi operado em 1984 e 1998. Tendo passado pela experiência de morte “por um minuto e meio” e tendo retornado à vida “por uma descarga elétrica”, Darwich confunde o sono, o pesadelo, os delírios, a insônia, a alucinação, a prisão, a morte e a vida, numa luta inconsciente contra a vida ou contra a morte? Era seu aniversário e acreditava-se ser o último. Viveu mais dez anos, não tendo resistido às complicações decorrentes da última e derradeira cirurgia no coração, realizada no Memorial Hospital de Houston. Faleceu em 9 de agosto de 2008, três dias após a cirurgia. Foi recebido com honrarias em Amã, trasladado para Ramallah e sepultado junto ao Palácio da Cultura, onde, um ano antes, havia recitado poesias para 2 mil pessoas. 

Seu último livro, Da presença da ausência, escrito às vésperas de sua morte, pode ser lido como um extenso poema lúgubre, como uma autobiografia em forma de prosa e poesia. Ou como um testemunho de vida, porque a morte de um poeta talvez não seja a morte, talvez seja só “outro jeito de viver!”. O “último Darwich” não é o derradeiro Darwich. O “último Darwich” é o ausente que continua presente.

Quem escreveu esse texto

Samira Osman

Professora de história da Ásia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), escreveu Imigração árabe 
no Brasil
(Xamã).