Literatura, Música, Poesia,

Protopunk da periferia

Antologia de Torquato Neto traz a inquietação do grande propulsor do tropicalismo

20nov2018

Cinco décadas depois, a Tropicália continua sendo um momento chave para se pensar a cultura brasileira. Não apenas pelo espantoso triênio em que ela existiu como movimento, mas também por seus desdobramentos. O principal motivo disso é provavelmente a força e a pluralidade das vozes que a constituíram, vindas de diferentes linguagens artísticas e atitudes ideológicas. Os caminhos, consequentemente, se bifurcariam nos anos seguintes, criando um campo amplo de possibilidades até hoje potentes para se pensar a atuação cultural (e política) no Brasil. 

A inquietação dos tropicalistas permitiu que eles transitassem, nas décadas seguintes, por diferentes posturas: do mergulho na indústria cultural à constituição de espaços marginais, do pop ao experimental. Entre essas vozes, Torquato Neto é uma das mais urgentes a serem resgatadas em profundidade. Não apenas por sua importante obra literária e musical, mas também por sua inquietude como propositor e agitador cultural. 

A antologia realizada por Italo Moriconi, Torquato Neto essencial, é uma excelente porta de entrada para esse resgate. Moriconi é um experiente organizador de antologias, com reconhecida qualidade, e consegue apresentar em seu livro as diferentes facetas de Torquato, com uma edição clara que permite mesmo ao leitor não familiarizado com o autor entender sua obra e sua trajetória. 

A primeira parte do livro, “Poesia, canção”, traz uma importante aproximação entre as duas linguagens artísticas mais presentes na trajetória de Torquato. A escolha de unir a composição musical e os poemas escritos numa mesma seção é um grande acerto, sem criar divisões artificiais no trabalho criativo de Torquato e, mostrando como as suas reflexões com a linguagem dialogavam em diferentes suportes.

O único porém é a organização proposta por Moriconi, que, ao invés da ordenação cronológica, decidiu pensar o que seria “uma espécie de livro de poesia — o ‘livro de poesia de Torquato’”. Embora a ordenação por núcleos temáticos ou campos de atração expressivos crie resultados interessantes, há uma preocupante mistura entre os poemas mais maduros dos últimos anos de vida do autor com produções ainda juvenis. 

Organização não cronológica

Além disso, a organização escolhida dificulta ao leitor a percepção da evolução da poesia de Torquato através dos anos, dos longos poemas em verso livre, com temática lírica e existencial, do início dos anos 1960, passando pelas letras-quase-manifestos tropicalistas, com sua justaposição e bricolagem estética (para usar o termo de Antonio Risério), até a fragmentação da linguagem e experimentação formal da virada para os anos 1970. 

Mesmo assim, no resultado final ainda prevalece a força expressiva de Torquato. Um dos raros autores, importante ressaltar, a conseguir criar poemas de real qualidade usando os preceitos da poesia concreta.   

As partes seguintes apresentam diferentes momentos do trabalho de Torquato enquanto divulgador e propositor cultural. O trabalho jornalístico de Torquato é apresentado especialmente por suas duas colunas em periódicos (“Música Popular”, no Jornal dos Sports, em 1967, e “Geleia Geral”, no Última Hora, entre 1971 e 1972). Temas como cinema, a Tropicália e o Festival da Canção de 1967 ganharam seções exclusivas, o que foi um acerto do organizador. 

Ali, é impressionante ver não apenas a qualidade reflexiva do autor, mas também a importância documental do seu testemunho de dentro, do acesso privilegiado a informações que generosamente apresentava ao público. Que falta faz hoje esta relação íntima entre o jornalismo e as artes, esta abertura das mídias para o contemporâneo, o que permite não apenas uma troca aprofundada entre os artistas e a crítica, mas também a criação qualificada de uma memória dos acontecimentos culturais. 

Importante aí também atentar para o contraponto entre os primeiros textos de Torquato, mais jornalísticos, e a total liberdade criativa da coluna nos seus últimos anos de vida: do testemunho distanciado à busca das brechas da realidade e de “propostas de uma visão urgente do fogo”, Torquato foi um importante ponto de criação de uma linguagem contracultural e livre no jornalismo brasileiro.

As colunas de Torquato eram espaços de diálogo. Era assim que ele utilizava a linguagem, muitas vezes chamando o leitor para a interlocução direta, e era coletivamente também que as colunas eram feitas: poetas, músicos e cineastas passavam por ela, dando seu depoimento e sua contribuição. É deste fato que nasce um erro da presente antologia: entre os textos de “Geleia Geral”, é reproduzido o “Cha-cal”, uma apresentação pioneira da então emergente poesia marginal. O texto, embora publicado na coluna de Torquato, é na verdade de autoria de Waly Salomão — o próprio título, aludindo ao show “Fa-tal” de Gal Costa que Waly estava produzindo na época, é um indicativo disso. Embora, dentro desse conceito de mostrar Torquato como um propositor e um articulador cultural, a reprodução de um texto de terceiros faça sentido, faltou o devido crédito para informar o leitor a verdadeira autoria. Algo fácil de ser corrigido nas edições subsequentes. 

Torquato era um desbravador. Com grande coragem e resistência, foi um dos grandes propulsores de um dos momentos mais ricos da cultura brasileira, exatamente por acontecer entre 1967 e 1972, anos em que o país estava imerso no pior momento da ditadura civil-militar. A sua atuação corajosa e inquieta precisa ser revista com atenção — e traz importantes contribuições para se entender o nosso momento atual, também marcado pelo afastamento do Estado do incentivo das artes e da livre expressão e por dificuldades de mercado. 

A atitude independente e protopunk de Torquato, a valorização da importância do fazer na medida do possível, aproveitando os avanços tecnológicos, e da urgência de testemunho — tudo isso diz muito sobre as possibilidades e os desafios de nosso tempo. Torquato ficou marcado pela sua morte precoce e trágica. Mas talvez seja preciso escapar da armadilha de ficarmos presos a isso e retomar, de maneira crítica e propositiva, a potência vital de sua obra, de sua ação e do seu pensamento. O ótimo recorte realizado por Italo Moriconi é um bom caminho para começarmos esse trabalho. 

Quem escreveu esse texto

Sérgio Cohn

É editor da Azougue e autor dos poemas de Um contraprograma (Patuá).