Memória,

A descoberta do dengo

O comovente livro em que Gilberto Dimenstein e Anna Penido registraram as últimas semanas de vida do jornalista

10nov2020

O “caranguejo que me comia por dentro” — como Gilberto Dimenstein chamava o câncer que surgiu em seu pâncreas e, em meses, foi alongando as garras até atingir o fígado e os pulmões do jornalista — estava sem controle. Haviam se passado seis meses de tratamentos agressivos, quando o médico anunciou para ele e Anna, sua mulher, que nada havia adiantado.

Chegando da consulta, ela decidiu ligar para o médico. Queria fazer perguntas que não teve coragem de fazer na frente do marido. Gilberto não quis ouvir a conversa e foi para a edícula, um refúgio em meio ao enorme jardim da casa em que moravam. Anna ouviu do especialista a palavra que ninguém enfiado nos círculos infernais do câncer quer ouvir: “terminal”.

Também jornalista, baiana dedicada à educação e às causas sociais, ela caminhou até a edícula e disse ao marido que só contaria o que ele quisesse saber. “Gil quis assistir um filme, comigo ao lado. Colocou Jojo Rabbit (uma sátira à Alemanha de Hitler) pra rodar. Ele adorava ver filme em que os nazistas se ferram. Quando acabamos, contei tudo pra ele”, me disse ela, em uma de nossas conversas pelo telefone, quando saía às pressas de uma loja. Tinha caído no choro na hora de pagar as compras. A cena se dava seis meses depois da morte do marido. O luto, assim como o mal que levara Gil, Anna estava sentindo, é ardiloso.

A morte veio três semanas depois do filme na edícula. No livro que escreveram juntos, contando sobre os dias em que a doença se espichou, Anna descreve como o marido partiu, na cama deles, depois de quatro dias de despedidas. Nesse tempo, ele quis comer a empanada de frango do Bar do Zé, perto dali, gravou o último depoimento para o livro e chorou, de mãos dadas com a mãe, os irmãos e por último os dois filhos. Desculpou-se por não ter sido mais afetuoso e ouviu deles que era muito amado. 

As horas finais, diz o comovente e lúcido relato de Anna, se deram assim:

Você estava sedado. Na madrugada, o meu corpo sentiu saudades e atravessou a extensão do nosso colchão para se colar ao seu. Sua respiração se agitou e seus braços começaram a se debater, como se quisessem me envolver em um abraço que se desfazia no meio do caminho. A enfermeira aumentou a dose de morfina, mas você só se acalmou quando voltei para a outra extremidade da cama […] Em um determinado momento, achei que já estava na hora e pedi para você se imaginar entrando naquele barquinho vermelho e amarelo que navegava nas suas alucinações […] e deslizasse pelas águas tranquilas do rio que margeia a ilha do Mosqueiro [no Pará], abrigo das suas memórias de infância. […] Uma lágrima escorreu dos seus olhos cerrados e sua respiração ficou mais grave e arrastada. Não demorou muito para que estivéssemos todos reunidos à sua volta. Gabriel e Marcos [filhos dele] aninhados na cama conosco, Joana [filha dela]ao telefone lá de Lisboa. Ouvimos juntos a sua música tema, “Clube da Esquina 2”. “Porque se chamava homem, também se chamavam sonhos, e sonhos não envelhecem.

Ninguém escolhe como nasce, mas a gente pode escolher, se tiver alguma sorte, como vai morrer. E eu escolhi me render, me deixar levar, me disse Dimenstein, quando estivemos juntos, dois meses antes de sua morte, em maio. Ele tentava me convencer que o câncer estava lhe dando os melhores dias de sua vida e que por isso estava satisfeito em ir embora. No livro, o jornalista explica como adotar essa atitude diante da morte lhe foi possível.  

Sentia-me um analfabeto emocional […]. Eu fazia reportagens, escrevia livros, ganhava prêmios, mas era um zero à esquerda nos relacionamentos […] Cheguei aos 63 anos cercado de pessoas que me desprezavam ou me admiravam, mas sem um círculo de amigos próximos. […] Meu filho Marcos ainda era bem pequeno quando a professora pediu que desenhasse a nossa família. No desenho, ele estava de frente, de mãos dadas com a mãe e o irmão Gabriel, e eu estava de costas, trabalhando no computador. Fiquei muito perturbado com aquela imagem.

O câncer chegou um ano e pouco depois que o filho de Marcos, primeiro neto de Dimenstein, nasceu. Com Zeca, o jornalista descobriu o dengo.

Meu neto era antídoto para muitos dos meus desconfortos com a doença. Quando vinha dormir conosco, a Anna passava uma hora cantando cantigas de ninar. Deitava ao lado deles e parecia que era eu que estava sendo colocado para dormir. Mas ninguém dormia, pois o Zeca perguntava a todo momento: “Por que o coelho comeu a cenoura com casca e tudo? Por que o pato bateu no marreco?” Aquela tempestade de porquês me fascinava. Quando dormia na nossa cama, passava a noite girando até ficar atravessado entre mim e a Anna. Eu adorava acordar de madrugada e vê-lo deitado naquela posição. Sentia um amor incondicional, um contentamento que nunca tive. […] Seus pais comentavam algo sobre mim, quando ele [então com dois anos] profetizou: “O tempo passou o homem. Vovô vai virar luz. Luz na bunda do vovô”.

O tratamento quimioterápico causava em Dimenstein esgotamento físico. Como ficava a maior parte do tempo deitado, resolveu assistir a filmes antigos. “Revi O poderoso chefão e me espantei com as cenas de Marlon Brando dialogando com Al Pacino. Eu pensava: ‘Como não vi essas expressões antes?’ Não vi porque o meu corpo estava no cinema, mas a minha mente vagava por outro lugar”, analisa. “Eu nunca estava presente. Estava sempre afobado.” O câncer, ele conta, abriu seus olhos para as sutilezas, como a do vermelho escandaloso das helicônias que cresciam no jardim de sua casa, que ele via todo dia, quando tomava café da manhã, mas nunca tinha notado. 

Nos dias em que se sentia mais forte, o jornalista se entregava ao prazer das sensações corpóreas. “Pedalava minha bicicleta e sentia o vento beijar o meu rosto. Às vezes, estava deitava de frente para a janela do meu quarto e a brisa vinha brincar com os meus pés. Muitas dessas sensações me fizeram lembrar da minha infância, quando ainda não tinha sido corrompido. […] Tomar um sorvete de limão siciliano com maracujá no meio da tarde passou a ter um significado diferente. Lambia a minha casquinha e compreendia que ninguém ao meu lado seria capaz de imaginar o prazer que aquele sorvete me dava.” Dimenstein ainda me contou que tomava canabidiol para dormir e que estava adorando, porque com ele tinha sonhos lindos. Um dia, exagerou na dose do remedinho, e Anna o encontrou dormindo com o rosto no prato de comida. 

Gilberto Dimenstein era um homem culto, encrenqueiro, sedutor imparável, preocupado com causas sociais, por vezes rude, e engraçado. Ele conta no livro situações envolvendo essas características, sem uma gota de modéstia e com a autodepreciação clássica dos bons escritores judeus — sua ascendência é sefardita. Já no fim da vida, por exemplo, um médico quis fazer mais uma de um caminhão de tomografias a que ele vinha se submetendo para ver que órgão agora o caranguejo tinha beliscado. Ele disse ao doutor: “Não vai adiantar. Toda vez que faço uma ‘tomo’, sou eu que tomo no cu”. Na mesma época, ligou para a ex-mulher. “Pedi desculpas por não ter sido um bom marido, e ela me confessou que lamentava não ter me dado uns tapas. Comentei: ‘Olha, perdeu a chance, porque, agora que estou velho e doente, vai pegar mal pra burro se você me bater’.” 

Veja, CBN e O Globo foram alguns dos lugares onde trabalhou, mas foi na Folha de S.Paulo, onde atuou por 28 anos, que Dimenstein realizou suas principais reportagens. Investigou casos de corrupção em Brasília — virou detrator do coronel baiano Antônio Carlos Magalhães —, desvendou esquemas de assassinato de meninos que viviam na rua e de redes de exploração sexual de meninas pobres do Norte e Nordeste. “Ajudei a criar organizações sem fins lucrativos importantes; mais adiante, fundei o portal Catraca Livre, que sempre deu destaque a temáticas cidadãs. […] Sabia que a minha contribuição tinha sido modesta, nada que pudesse se comparar a personalidades como Martin Luther King, Mahatma Gandhi e Konrad Adenauer. Perto desses gigantes, me via como um pernilongo. Mas, diante de mim mesmo, sentia que havia sido um Luther King, um Gandhi, um Adenauer.”

A doença agarrou Dimenstein num momento em que ele estava forte. Parara de fumar havia décadas, de beber, fazia seis anos (“Era um prazer imenso acordar cedo, tomar café e, em seguida, beber um Jack Daniel’s”, ele conta no livro, sobre um antigo hábito). Não tomava café nem comia carne vermelha, pedalava por horas e fazia musculação quase todo dia. A decisão foi tomada meio a contragosto (“Sempre tive um pouco de desprezo por quem fazia esporte. Achava que era desperdiçar um tempo que poderia ser mais bem utilizado com leitura e estudo”), ao perceber dificuldades para carregar o neto. Dois meses antes tinha feito check-up: estava tudo ok. Mas uma noite ele teve um sonho.

Em A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud discorre sobre diversos casos em que pacientes “descobrem” doenças quando estão dormindo: “Aristóteles já declarara ser bastante provável que o sonho chame nossa atenção para estados patológicos incipientes dos quais ainda nada se percebe na vigília, e autores médicos, cujos pontos de vista certamente estão distantes da crença nos dons proféticos do sonho, pelo menos admitiram sua importância no anúncio de doenças”. Algo nesse horizonte pode ter acontecido com Dimenstein. Ele escreve:

“Você está com câncer”. Foi uma coisa muito rápida. A mulher aparecia de corpo inteiro, vestida com uma roupa escura, mas eu só me lembro do seu rosto iluminado […] Não parecia um ser etéreo, mas uma médica confiável, apresentando um diagnóstico”.

Intrigado, já que gozava de boa saúde, resolveu procurar um médico. E assim, descobriu o bicho.

Em meio a todas essas impactantes experiências, a que mais emocionava o jornalista era a que ele vivia com Anna Penido, sua mulher, àquela altura, fazia vinte anos.

Eu não sabia o que era o amor de verdade, nem que seria possível amar outra pessoa com tamanha profundidade. Nunca imaginei que experimentaria o nível de cumplicidade que passei a ter com a Anna […]. Quando acordava na madrugada e abraçava o corpo dela, sentia como se minha alma degelasse […]. O grande momento do dia eram as sessões de massagem da Anna. O ritual começava com um banho demorado. Eu sentava em uma cadeira plástica, embaixo daquela água quente, sentindo desaparecerem os cheiros do vômito, da urina e da doença. Com a pele ainda úmida, deitava atravessado no colchão, e a Anna tocava delicadamente os meus pés. Sentia as mãos dela subindo pelas minhas pernas, alcançando as minhas costas, mas nunca me lembrava do final. Eu dormia experimentando aquele gozo relaxante e sorria ao pensar que a nossa relação ficava cada dia melhor.

Ainda jovenzinha em Salvador, Anna conheceu Dimenstein, que já era um jornalista famoso, pela televisão. Ela sofria bullying na redação, onde era chamada de “menina que toma conta da creche” por só querer dar boas notícias. Nos anos seguintes, a vida primeiro, e depois um buliçoso desejo ajeitaram para que se encontrassem em palestras e seminários, justamente sobre boas notícias: projetos na área da educação. Ambos eram casados, mas não foi possível ignorar o que sentiam. No primeiro jantar a sós, num restaurante do Rio, no dia do aniversário do jornalista, o corpo de Anna tremia de tensão, quando, do nada, uma taça de cristal estourou na mesa. Dimenstein contou a ela que os judeus quebram copos nas cerimônias de casamento. E prenunciou que eles ficariam juntos. Juntos, por duas décadas, tocaram uma porção de trabalhos.

Gil morreu antes que o livro ficasse pronto. Dias depois do sepultamento, Anna refugiu-se sozinha na casa de montanha do casal. Sentada numa escrivaninha de madeira, editou os escritos do marido e anexou ao livro suas próprias memórias.

“Sou grata a você por um milhão de motivos, mas me sinto especialmente agradecida por você ter me engravidado deste livro”, escreveu. Deixou registrada também, para quem for forte o suficiente para ler, a última gravação que o marido fez.

Eu não costumo chorar assim, mas este choro é o mérito de um grande amor, em que eu fui muito abaixo dela. Eu agradeço por ter conhecido esta cumplicidade. E, neste momento, o meu livro acaba.

Quem escreveu esse texto

Juliana Linhares

É jornalista.