Música,

O Brasil de Elsie Houston

Livro-disco narra a trajetória da cantora modernista que divulgou os ritmos do interior do país na França e nos Estados Unidos

01nov2019

Elsie Houston, por incrível que pareça, segue praticamente desconhecida no país de cuja música foi uma divulgadora. Nascida no Rio em 1902, a cantora e pesquisadora contribuiu para os esforços de renovação musical do Brasil a partir dos anos 1920 e tomou parte nos movimentos de vanguarda do período. Retraçar a história de Elsie é esbarrar em Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Flávio de Carvalho, Jayme Ovalle, Lívio Xavier, Mário Pedrosa, Ninon Vallin, Luciano Gallet e os surrealistas de Paris.

Só por isso já seria muito bem-vindo o livro, que é também disco, do coletivo Goma-Laca: Cantos populares do Brasil de Elsie Houston. O grupo, que pesquisa a produção musical brasileira gravada em discos de 78 rotações, recupera Chants populaires du Brésil, livro em que Elsie reuniu 42 motivos populares, entre lundus, cocos, emboladas, cantigas indígenas e do candomblé e que lançou na França em 1930.

O livro-disco agora publicado recupera a trajetória de Elsie, destaca sua importância no cenário musical (“Chocava o público pela técnica vocal e pela ousadia de levar música popular para o universo do canto lírico”) e conta a história das vinte canções regravadas, noventa anos depois, em CD que reúne nomes como Alessandra Leão, Juçara Marçal e Siba. Elsie morreu cedo e longe, aos 41 anos, em Nova York. Deixou rastros de sua voz e presença não só em seu país natal, como também na França e nos EUA.

Em meados dos anos 1920, já tendo passado pela Argentina e pela Alemanha, Elsie vai estudar canto em Paris, onde conhece o poeta francês Benjamin Péret (1899-1959), um dos expoentes do surrealismo e com quem se casaria em abril de 1928. O enlace foi apadrinhado por André Breton e Heitor Villa-Lobos, que os descreveria “como dois estupendos artistas que casam o Brasil com a França e querem ter filhos de arte cabocla”.

Menos de um ano depois, a cantora e o poeta vêm ao Brasil com o intuito de gravar documentários e viajar pelo interior do país. Na bagagem, trazem inúmeros projetos e cartas de apresentação do padrinho de casamento. Nelas, Villa-Lobos se refere a Elsie como “cantora de fibra, com purezas brasileiras” e “admirável cantora, primogênita da nossa nova raça, brasileira genuína em físico, em alma e espírito”.

Movimento modernista

A chegada dos dois é amplamente noticiada na imprensa. Em 19 de fevereiro de 1929, poucos dias depois de aqui aportarem, podia-se ler no Diário Nacional: “Mais uma patrícia leva ao Velho Mundo a genialidade de nossas canções”. Logo tomam parte da programação cultural do Rio (onde morava a família de Elsie) e de São Paulo. Circulam entre os modernistas (ela tinha ficado especialmente ligada a Mário de Andrade), participam da “segunda dentição” da Revista de Antropofagia e frequentam saraus e jantares enquanto tentam conseguir recursos para executar seus projetos no Brasil. 

São inúmeros os testemunhos da passagem do casal pelo país. Geraldo Ferraz dedica vários momentos de seu Depois de tudo a Elsie: “Elsie Houston, a admirável cantora do ‘Macumbagelê’, coloca-se no quadro de encantamento da cidade, nesse inesquecível recital de canto do Teatro Municipal, em que programara as antigas canções francesas […] e as modinhas populares brasileiras, mesmo as anônimas — pela primeira vez no sul do Brasil é executado e aplaudido o ‘Bumba meu boi’, cedido por Mário de Andrade, do livro inédito Na pancada do ganzá. Elsie cantou muito nessa noite as canções típicas brasileiras postas em pauta por Villa-Lobos, o ‘Tutu Marambá’ das canções brasileiras de Luciano Gallet”.

No último ano da estada do casal, Péret se envolve na divulgação das ideias de Trótski, ajudando a fundar a Liga Comunista de Oposição junto a Lívio Xavier e Mário Pedrosa (que era casado com Mary Houston, irmã de Elsie). Da agitação política resulta sua detenção e expulsão do país, em 1931. Elsie, que acabara de dar à luz Geyser, o único filho dos dois, segue para Paris com Péret, de onde voltará pouco depois, já separada. Fica no Brasil até 1937, quando vai para os EUA.

São várias as hipóteses para que, apesar do tanto que fez pela música brasileira, Elsie seja pouco conhecida por aqui. Em primeiro lugar, que se registre que era uma mulher em ambiente majoritariamente masculino e uma cantora que não se limitava a cantar, mas era também uma pesquisadora (algo raro na época). E o fato de ter vivido pouco (e por tanto tempo fora do país) ajuda a entender a razão para que seu nome reste quase ignorado fora dos meios acadêmicos.

Finalmente, a temporada brasileira do casal, a um só tempo curta e conturbada, permite iluminar algumas das razões para que Elsie seja hoje menos conhecida do que seus pares. Vale lembrar que Péret, o enfant terrible do surrealismo, insultava padres nas ruas e falava inconveniências na frente de senhoras, tudo isso na São Paulo do fim dos anos 1920 — e o resultado foi que figuras como Manuel Bandeira e Drummond passaram a evitar os dois (à medida que a insolência do surrealista ofendia a sensibilidade local, crescia a lista de seus desafetos). Elsie acaba sendo atingida por esse distanciamento, ainda que os amigos lhe reconhecessem o enorme talento e por ela guardassem grande afeição.

O livro-disco, se não apresenta maiores descobertas sobre essa imensa artista, contribui para que sua história e importância sejam enfim trazidas à baila. E faz isso com a delicadeza, a temporalidade e mesmo o suporte de tempos idos: recorre ao CD e a um pequeno livro ilustrado para acompanharmos a história de cada canção, interpretada por um time de talentosos artistas. Em Mário de Andrade por ele mesmo, Paulo Duarte, ao comentar sobre o grupo que frequentava o apartamento onde ele e Mário montavam o que viria a ser o departamento de cultura, revela: “Um dia juntou-se a nós Elsie Houston, recém-chegada de Paris […]. Elsie, dona de notável cultura musical, trouxe consigo a música mais elevada de motivos folclóricos do Brasil, e por ela cantada. Ninguém se lembra do que a nossa cultura lhe deve”. Cantos populares do Brasil de Elsie Houston vem resgatar essa dívida.

Quem escreveu esse texto

Rita Palmeira

É editora e crítica literária.