Literatura,

Uma mulher comum

O primeiro volume dos diários de Virginia Woolf mostra sua rotina, em que caminhava, cozinhava, recebia amigos e imprimia livros

08jul2021

Existe Virginia Woolf e existe a mitologia em torno dela, o que nos impede a aproximação a uma mulher e escritora real, que, além de viver e escrever grandes cenas, também vivenciou coisas comezinhas e sem encanto. É necessário conhecer os seus aspectos comuns para que se faça uma leitura precisa de sua obra, o que deve importar mais do que detalhes mais ou menos apetitosos de sua biografia.

Os diários de Woolf, escritos ao longo de 44 anos, de 1897 — quando ainda era adolescente — até 1941, alguns dias antes de sua morte por suicídio, foram publicados pela primeira vez em 1953, mas de forma editada por seu marido, Leonard. Somente quase trinta anos mais tarde foi realizada uma edição integral do conteúdo desses diários, entre 1977 e 1984, pela esposa do sobrinho de Woolf, a pesquisadora Anne Olivier Bell. No Brasil, apenas agora temos acesso à versão completa do primeiro volume dos diários, de 1915 a 1918, caprichosamente publicada pela editora Nós, com tradução de Ana Carolina Mesquita.

Ler os diários de uma escritora axial para o século 20 lentamente nos apresenta à gênese de sua escritura

Se o que importa para a compreensão da obra de uma autora do estatuto de Woolf é deter-se sobre seus livros, qual o interesse em ler seus diários? Diários em que ela relata seus passeios, o clima, suas idas ao clube ou à cidade, o aluguel de uma casa, os problemas com as criadas e os comentários incessantes sobre os convidados que o casal recebia. Seria para, em meio a essas atividades tão rotineiras, encontrar momentos sublimes, confissões inesperadas, algo que revele os segredos de sua literatura? Se for essa a intenção, o leitor vai se frustrar.

Antes de tudo, ler os diários de uma escritora axial para o século 20 lentamente nos apresenta à gênese de sua escritura. A forma como ela se dedica a descrever as paisagens, por exemplo, com extrema atenção e apuro até poético, em muito antecipa a importância que esse elemento vai adquirir em sua obra posterior. “Há certo ar estrangeiro numa cidade que se ergue contra o poente & por onde se chega por uma trilha bastante percorrida que atravessa um campo” é uma frase de seu diário do início de 1915. Ouvimos ressoar aí a atmosfera esfumaçada e também ondeante de sua prosa futura, além da combinação muito presente de cidade e natureza. Quanto às inúmeras visitas descritas e, o que é mais curioso, a sua simultânea repulsa e necessidade delas, vê-se a configuração lenta do papel fundamental que os vários “convidados” adquirem em obras como Mrs. Dalloway e Ao farol.

Banalidades

O fato de o diário testemunhar as banalidades e os problemas do início do século 20 nos habitua a uma mulher comum e retira um pouco a capa de mitologia que insiste em recobrir tantas interpretações de obras da autora como antecipações ou justificativas para o seu suicídio. Como se tudo concorresse para isso. Mas não. São jantares com o economista John Maynard Keynes, conversas com Katherine Mansfield, idas ao clube para tomar chá, compras para a casa, o trabalho difícil, mas amoroso com a prensa — a vida de uma dona de casa, esposa, irmã, diretora de um clube de mulheres sufragistas e escritora. Se não é a coisa mais típica do mundo, tampouco difere muito da vida de algumas de suas amigas.

Para leitores mais atentos, a justaposição de duas frases escritas em 15 de janeiro de 1915 remete à ironia finíssima pela qual ela se tornou conhecida, mas também a certo nonsense programático, em que se insinua uma crítica subliminar ao status quo: “Neste exato momento, sinto como se a raça humana não tivesse nenhuma personalidade — como se perseguisse o nada, acreditasse no nada, & combatesse apenas por um monótono senso de dever. Hoje comecei a tratar meu calo, há uma semana precisava fazê-lo”. Como não lembrar, aqui, da frase de Kafka “Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde”, escrita, coincidentemente ou não, em 1914? A Primeira Guerra Mundial, em meio à qual Woolf escreveu esses diários, avisava diariamente sua presença através de aviões, alarmes e bombardeios.

Mesmo com dificuldades financeiras, o casal compra o equipamento necessário para a impressão artesanal e própria de livros, formando a editora Hogarth Press. Woolf passa tardes inteiras imprimindo, encadernando (ela mesma encadernou seus diários), colando e encapando exemplares dos livros de Katherine Mansfield — com quem ela mantinha uma relação de admiração e antipatia —, de T. S. Eliot e, finalmente, de livros de sua autoria, cujas boas vendas e críticas estimularam o aumento da produção e a consolidação da editora.

O fato do diário testemunhar as banalidades e os problemas do início do século 20 nos habitua a uma mulher comum e retira um pouco a capa de mitologia que insiste em recobrir tantas interpretações

Outra face saborosa dos diários são as imagens comparativas que a autora utiliza para descrever as pessoas, muitas vezes de forma zombeteira, mas sempre com um humor até inesperado. Mesmo assim, a verve é reconhecível e antecipa tanto seus ensaios como sua habilidade na criação de metáforas: “A semelhança de Gerald com um cachorro pug superalimentado & mimado aumentou imensamente”; “De alguma maneira a aparência dele me lembra uma bota excelente, marrom, extremamente lustrosa e experiente”; e a mais chocante “Considerando a desimportância delas, [as criadas] deviam ser comparadas a moscas no olho, pelo desconforto que são capazes de causar, apesar de tão pequenas”. Sim, Virginia Woolf, como muitas mulheres da época, mesmo as mais progressistas, também dependia das criadas e, como tantas outras, também sabia tratá-las bem ou mal. Mas não se deve julgá-la anacronicamente nem, por isso, deixar de considerar suas tendências feministas que, nesses diários, aparecem no cargo que ela ocupa como diretora de uma guilda de mulheres.

Em tradução precisa, fluente e com a curiosidade de ter mantido os “&” originais, os diários mostram uma mulher dos 33 aos 35 anos, em meio a uma guerra, enfrentando racionamento e carestia, caminhando obsessivamente pelos bosques, jardins e pela cidade, cozinhando e recebendo, imprimindo e escrevendo. Uma mulher que reconhecemos pelo que sabemos de seu futuro, mas que, por seu passado, nos franqueia generosamente as portas para o que virá.

Quem escreveu esse texto

Noemi Jaffe

Escritora e crítica literária, é autora de Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras).