Literatura,

Todas as famílias infelizes se parecem

Volume reúne obra mais controversa de Lev Tolstói e duas novelas inéditas de sua mulher, Sófia Tolstaia

01jan2023

Em certa passagem de Anna Kariênina, um grupo de crianças sai para colher cogumelos na orla da floresta, acompanhado de Serguei Ivánovitch e de Várienka. Ele é viúvo e muito mais velho do que ela, mas é evidente para os dois que estão apaixonados um pelo outro. Ela espera o momento em que ele enfim fará a proposta. Tudo está perfeitamente arranjado para isso: Serguei Ivánovitch já provou para si mesmo que ela é a mulher ideal, Várienka está convencida de que o ama; as crianças brincam ao longe, faz-se um silêncio denso entre os dois — “agora ou nunca, era preciso explicar-se”. Mas eles caminham, olham-se, sabem de tudo isso e continuam calados. A pergunta que sai da boca dela, contra a sua vontade, é sobre cogumelos; ele, também contra a vontade, responde sobre cogumelos. A hora passa e eles perdem o momento: “Compreenderam que o assunto estava encerrado, que aquilo que deveria ser dito não o seria”. O pedido não é feito, os pretendentes não chegam a ficar noivos.

Sempre achei essa passagem especialmente melancólica: simplesmente por vergonha, excesso de zelo ou etiqueta, um casal que tem tudo para se unir acaba por nunca se casar. Mas, depois de ler as três novelas reunidas em Tolstói e Tolstaia (Carambaia), lembrei desse trecho e passei a pensá-lo de outro jeito. Ele pode ser lido também com uma sensação de alívio: se o casamento não se consuma, fica a promessa de uma felicidade possível — que, como não se realiza, também não chega a murchar.

No volume, com ótima tradução de Irineu Franco Perpetuo, está a novela mais controversa de Lev Tolstói, “Sonata Kreutzer” — escrita mais de dez anos depois de Anna Kariênina —, e as duas únicas novelas escritas pela esposa do escritor, Sófia Andrêievna Tolstaia, “De quem é a culpa?” e “Canção sem palavras” — inéditas em português. Tudo gira em torno de casamentos infelizes: uniões de homens mais velhos, cheios de experiência, com mulheres bem novas, cheias de expectativas e de uma “inocência infantil”. Essa é, aliás, a história do próprio casal Tolstói: em 1862, quando se casaram, ele tinha 32 anos, uma filha ilegítima e já era um escritor conhecido; ela tinha 18 e pouca ou nenhuma experiência de vida fora do círculo familiar.

Histórias de um casamento

“Sonata Kreutzer”, novela de 1889, quando Tolstói já tinha renegado seus trabalhos anteriores e aberto mão dos direitos autorais, é a história de um casamento que termina em assassinato. Durante uma longa viagem de trem, sob o ritmo repetitivo da locomotiva, o sombrio personagem Pózdnychev, tomando um chá fortíssimo e fumando um cigarro atrás do outro, faz um manifesto contra o matrimônio e até mesmo contra o ato sexual: se as relações começam bonitas e apaixonadas, já na lua de mel vem a desilusão: “É desconfortável, vergonhoso, asqueroso, penoso e, principalmente, tedioso, impossível de tão tedioso!”

Sófia Tolstaia escreve uma resposta explícita à novela de seu marido, ‘Sonata Kreutzer’

Ele explica, usando como exemplo a própria história, como as relações entre os casais se tornam cada vez mais hostis, chegando ao ponto “em que já não era a divergência a produzir hostilidade, mas a hostilidade a produzir divergência”. Entre momentos dogmáticos e moralistas, há também passagens que o aproximam de textos feministas, em que a condição da mulher — considerada pela sociedade um “instrumento de prazer” — é comparada à dos escravos.

Pózdnychev conta como matou a esposa em um momento de ciúme doentio. Ele desconfiava que ela o traía com um músico — e, assim como o casamento, a música também é considerada por ele uma “coisa terrível”, que nos obriga a nos esquecer de nós mesmos. Sem nenhuma evidência além dos sinais que ele enxerga de que a esposa teria um amante (o que faz essa novela lembrar Otelo, de Shakespeare e Dom Casmurro, de Machado de Assis), ele se deixa levar pela “plena loucura” e acaba com a vida dela.

O mais horrível era que eu reconhecia em mim o direito pleno e indubitável sobre o corpo dela, como se fosse o meu corpo, e junto com isso sentia que não podia dominar aquele corpo, que ele não era meu e ela podia dispor dele como quisesse, e queria dispor dele não como eu queria.

Sófia Tolstaia, em “De quem é a culpa?”, escreve uma resposta explícita à novela do marido. Aqui, acompanhamos de perto a perspectiva de uma mulher, Anna, e a história de seu casamento com um homem experiente. Da admiração por ele e o deslumbramento com uma vida possível, a menina rapidamente se frustra. Ela fica cada vez mais abatida por perceber que não é a única para o marido, que ele já teve muitas antes dela e que mesmo o matrimônio não o impede de se interessar por todas as que chamam sua atenção. A relação, que durante o noivado era apaixonada e calorosa, não demora a ganhar um ar de indiferença, cheia de “alfinetadas em lugares especialmente doloridos”. “Será que apenas nisso está a vocação feminina”, ela pensa, “passar, de um corpo a serviço de uma criança de peito, ao corpo a serviço do marido? […] Onde estou eu?”

Anna acaba por se aproximar de um antigo amigo do marido. Mesmo que a conexão entre eles seja sobretudo espiritual e não se torne carnal em nenhum momento (ou exatamente por isso), os dois se amam, pura e verdadeiramente. Ela sente uma “repartição interna em sua alma”, mas aos poucos entende que não pode ser considerada culpada: foi a ausência do marido que a afastou de si mesma e de tudo a que ela aspirava.

Se acontece de uma mulher casada amar outro homem, o culpado é quase sempre o marido; ele não soube satisfazer as exigências poéticas manifestadas por uma natureza feminina jovem, pura, e destruiu-as, dando em troca apenas o lado rude do matrimônio.

Essa novela também termina com o assassinato da esposa pelo marido enlouquecido de ciúmes.

Uma pequena rachadura

As novelas de Sófia Tolstaia, tanto “De quem é a culpa?” quanto “Canção sem palavras” — outro texto sobre uma mulher que encontra consolo em um segundo homem, fora do casamento —, foram publicadas postumamente e só vieram a público recentemente: a primeira em 1994 e a segunda em 2010. Até então, estavam escondidas no meio de seus diários e manuscritos. Já a “Sonata Kreutzer” foi publicada na época, em 1889, mas censurada pelo tsar. Quando traduzida para o inglês, foi considerada de “caráter indecente” e teve sua distribuição barrada nos Estados Unidos. Émile Zola chegou a dizer, sobre o texto: “É um pesadelo […] que nasceu de uma imaginação doente. [Tolstói tem] uma pequena rachadura na cabeça”.

Sófia chegou a ir pessoalmente até o tsar Alexandre 3o para pedir permissão de incluir essa novela entre os volumes da obra completa de Tolstói — e a obteve. Ao mesmo tempo, sabe-se que ela mesma detestava a novela do marido: muitos associavam a história contada ali ao casamento deles, e isso a irritava profundamente. “A ‘Sonata Kreutzer’ é falsa em tudo o que tem a ver com as experiências de uma jovem mulher”, ela anotou em seu diário. Sua dedicação em, mesmo assim, fazer com que a novela fosse publicada revela muito sobre essa relação complicada — ela sempre trabalhou com Tolstói em seus livros, chegou a recopiar Guerra e paz seis ou sete vezes. Mas, principalmente nos últimos anos do casamento, as brigas entre os dois, várias vezes em público, escandalosas e até perigosas, eram conhecidas por todos que frequentavam Iásnaia Poliana, a propriedade rural dos Tolstói.

É difícil ler essas novelas e a partir delas chegar a alguma conclusão sobre o casamento. É também difícil não reconhecer algo do que lemos ali. Por mais que nossa época seja outra e que estejamos longe da Rússia, muito do que é retratado nesses textos ressoa no que vivemos até hoje nas relações amorosas e sexuais. Podemos falar da violência contra a mulher e dos feminicídios, que seguem acontecendo (o Brasil é um dos países com o maior índice de homicídios femininos no mundo), ou das violências diárias e nem sempre explícitas do que hoje chamamos de machismo estrutural, mas nem precisamos chegar até aí: qualquer um que já esteve casado vai se reconhecer em algumas passagens que retratam a solidão acompanhada ou o amor que se converte em ódio sem explicação aparente.

Na edição da Carambaia há também o posfácio de Tolstói a “Sonata Kreutzer”, escrito depois de o autor receber inúmeras cartas cobrando explicações em relação à novela. Ali, ele sistematiza suas opiniões a respeito do matrimônio, endossando as prescrições que seu personagem vocifera no trem. Além de ser contra o sexo fora do casamento, ele prega a abstinência sexual até mesmo entre os cônjuges.

Mas nem o próprio Tolstói parece estar completamente de acordo consigo mesmo: ele está pensando, e o mais interessante de acompanhar os pensamentos de pessoas inteligentes não é encará-los como definitivos, mas perceber como eles se definem apenas para em seguida perder novamente a forma. Estamos ainda em um momento anterior à psicanálise; as percepções sobre si mesmo e o outro, sobre as relações, começavam a ser mapeadas em sua complexidade, seus tantos níveis e contradições. Nos textos críticos do volume, de Mário Luiz Frungillo e do próprio Irineu Franco Perpetuo, vemos como essas questões atravessam a obra de Tolstói do começo ao fim, e nunca se resolvem ou se esgotam — ao contrário, ao longo da vida do autor elas parecem se tornar cada vez mais insolúveis: “[…] das brechas dessa incoerência emerge um confronto crítico de Tolstói com suas próprias ideias, como se ele espreitasse nelas o perigo de uma explosão de irracionalidade assassina”, diz Frungillo.

Qualquer um que já esteve casado vai se reconhecer em passagens que retratam a solidão acompanhada

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Talvez, do ponto de vista do velho Tolstói, a frase célebre que abre Anna Kariênina tenha que ser invertida. Se, como diz o personagem de “Sonata Kreutzer”, “99% dos cônjuges vivem no mesmo inferno”, então todas as famílias infelizes é que se parecem; são as famílias felizes que, para serem realmente felizes, precisam inventar um casamento à sua maneira.

Quem escreveu esse texto

Leda Cartum

Escritora e roteirista, é autora de O porto (Iluminuras).