Literatura,

Sobreviver não é suficiente

Novo romance de Jacqueline Woodson traz a trajetória de uma família afro-americana que sobreviveu ao massacre de Tulsa, em 1921

18mar2022

A única coisa de que Melody tem certeza é que vai para faculdade assim que terminar o ensino médio. É um desejo seu, mas que também foi sutilmente imposto pelos avós, que temem que ela siga o mesmo caminho da mãe. Melody é fruto de um caso adolescente, e até então sem futuro, entre Iris e Aubrey. Ambos tinham apenas quinze anos quando descobriram a gravidez. Aos dezesseis anos, Melody está descendo as escadas da casa dos seus avós. É o seu baile de debutante. A cada degrau, a jovem sente estar se desvencilhando de uma maldição. Seus passos são acompanhados pela família ao pé da escada, cheia de esperança e expectativa.

Jacqueline Woodson decide iniciar Em carne viva com essa suposta contraposição entre mãe e filha para nos apresentar um universo familiar cheio de angústias, contradições, dilemas, decepções, sonhos, ambições. Sobrevivente do massacre de Tulsa, a família de Melody tem compromisso com o futuro. Em 1921, eles viram uma multidão de moradores brancos marchar rumo ao distrito negro de Greenwood com tochas em punho, embebidos de ódio. O bairro era popularmente conhecido como “Black Wall Street”, por reunir muitos comerciantes e empreendedores negros. Num contexto de forte segregação racial, o desenvolvimento econômico da população negra incomodava, intensificando ainda mais as tensões raciais na cidade.


Em carne viva, de Jacqueline Woodson

Na madrugada do dia 1º de junho, os invasores brancos atearam fogo às casas e lojas de Greenwood. Os ataques não eram apenas em terra: alguns pilotos sobrevoavam o bairro e lançavam dinamite sobre os imóveis. Um relatório apresentado pela Comissão da Rebelião de Tulsa em fevereiro de 2001 reportou 39 mortos, sendo 26 negros e treze brancos. A estimativa, porém, é contestada por historiadores, já que as vítimas relatam que muitos corpos foram jogados no rio Arkansas e em valas comuns. O número real pode se aproximar da casa dos trezentos mortos, com o massacre deixando mais de 10 mil desabrigados, além de um prejuízo de 1,8 milhão de dólares (cerca de 27 milhões de dólares em 2021, atualizados pela inflação).

O episódio é considerado um dos piores incidentes de violência racial da história norte-americana, mas segue sendo pouco conhecido até mesmo pelos descendentes dos sobreviventes. Em Em carne viva, Jacqueline Woodson explora o saldo psicológico nos sobreviventes e nas gerações seguintes — a festa de Melody acontece oitenta anos após o massacre, em 2001. Ao inserir episódios reais de violência racial, a autora parece querer estimular seus leitores a conhecer a história pelos próprios meios. A sensação é de que se está lendo o relato de alguém que passou por aquilo, sem diálogos artificiais e com uma profusão de dados e fontes que não faria sentido aquele personagem dar.

Romance familiar

Enquanto lidam com o trauma, as famílias estabelecem que nada nem ninguém poderá deixar suas crias desamparadas. Tudo o que conquistam é poupado e guardado — ainda há uma multidão com tochas em punho à espreita. O massacre de Tulsa é apenas um dos muitos episódios em que a população afro-americana teve que recomeçar do zero, tendo suas fortunas saqueadas e destruídas. A trama de Woodson aborda as estratégias dessas famílias para permanecer de pé, tendo orgulho de suas trajetórias. Não é um romance sobre Tulsa, é um romance familiar.

Ao mesmo tempo, os pais de Iris não conseguem perdoar a filha por ter falhado num jogo em que pessoas negras não podem errar. Iris não sabia o que significava, para uma família negra de classe média, ter uma filha grávida aos quinze anos? Como ela pôde fazer isso com seus pais? A única escolha de Iris foi transar sem camisinha. Parecia, no entanto, que ela estava decidindo romper com sua família. Ela acabou rompendo consigo mesma. A sua casa se tornou o único lugar onde a palavra lar não fazia sentido.

Ao inserir episódios reais de violência racial, a autora estimula seus leitores a conhecer a história pelos seus próprios meios

Woodson explora com maestria as escolhas que duas famílias negras fizeram em busca da sobrevivência. O pacto dos mais velhos é pela construção de um legado que nem o fogo seja capaz de arruinar; o pacto dos mais novos é pela liberdade. E a escritora sabe muito bem como percorrer esses diferentes universos pessoais, estabelecendo um estilo e uma linguagem próprios para cada personagem. A prosa é fragmentária e poética, com um revezamento de narradores, estabelecendo elos entre passado e presente em poucas linhas.

Apesar de ser conhecida no Brasil por seus romances destinados a leitores adultos, como Um outro Brooklyn, Jacqueline Woodson tem uma longa carreira premiada como escritora infantojuvenil nos Estados Unidos, tanto que em 2020 ganhou o Hans Christian Andersen, o mais prestigioso da literatura infantojuvenil. Suas recentes incursões literárias nesse novo escopo têm sido festejadas por público e crítica — Em carne viva foi eleito o livro do ano pelo The New York Times.

O romance é uma ode à ancestralidade, desde a dedicatória — “aos antepassados, tantas e tantas gerações de submissão e maus-tratos” — até a forma como a autora desenvolve personagens negros imperfeitos e humanos. Os ideais de maternidade são revistos, e não há uma barriga sacralizada e um zelo à cria inerente à gestação, muito pelo contrário. Há corpos desgastados pelo “sistema” — como a mãe de Aubrey sempre se refere às políticas do Estado estabelecidas por brancos —, a perda e a redescoberta de desejos sexuais, vícios e relacionamentos conflituosos. Nem as expectativas que os mais velhos impõem aos mais novos podem ser facilmente justificadas com a máxima do “é para o seu próprio bem”. As expectativas individuais e o modo de se relacionar dizem muito mais sobre cada indivíduo do que sobre o outro. Nenhum personagem passa incólume, o que só enriquece a trama.

Jacqueline Woodson explora identidade, gentrificação, educação, perda, maternidade, desejo sexual, classe e status sem nenhum tom de obrigatoriedade, como se fosse apenas uma necessidade dos novos tempos. Cada questão ali é real — até para uma ficção.

Quem escreveu esse texto

Yasmin Santos

Jornalista. Foi editora-assistente do Nexo Jornal e repórter da revista Piauí.