Literatura,

O paradoxo da melancolia

Em antologia de ensaios, Susan Sontag defende que a solidão conduz à amargura, mas também à fertilidade intelectual

18abr2022 | Edição #57

A figura de Saturno remete tanto à divindade quanto ao planeta, e desde a Antiguidade tem laços estreitos com a agricultura, a perseverança e a melancolia. Uma das representações mais conhecidas desse último elemento é a gravura de Albrecht Dürer Melancolia I, de 1514, que mostra uma figura alada sentada com ar pensativo diante de uma série de objetos simbólicos ligados ao mundo da alquimia. A melancolia está associada à “bile negra”, um dos quatro humores que organizam a saúde do organismo, substância regulada pela influência de Saturno.


Sob o signo de Saturno, de Susan Sontag

Susan Sontag era fascinada pelas ramificações artísticas e culturais do caráter saturnino, algo que decorre também de seu interesse pela obra e pela personalidade de Walter Benjamin. É o texto sobre Benjamin que dá título à coletânea de ensaios Sob o signo de Saturno (1980), relançada agora no Brasil com nova tradução. Escreve Sontag: “Benjamin projetou a si mesmo, seu temperamento, em todos os seus temas principais, e seu temperamento determinava a escolha dos assuntos sobre os quais escrevia”. Para a autora, Benjamin alcança seu brilhantismo quando promove o encaixe entre tema, temperamento e reflexão crítica — o que faz ao escrever sobre Baudelaire, Proust, Kafka, Karl Kraus, chegando até “a encontrar um elemento saturnino em Goethe”. Em Benjamin, Sontag encontra um modo de fazer crítica que realiza “um uso seletivo da vida em suas meditações mais profundas sobre textos”, informação que “revelava o melancólico, o solitário”. 

O livro de Sontag, no entanto, abarca muito mais do que um mergulho em Benjamin. Trata-se de um inventário crítico dos interesses e preocupações estéticas da autora, revelando de forma detalhada suas preferências, suas reservas e seus entusiasmos. Logo no início encontramos as pistas de uma paisagem intelectual que é, também, afetiva: o livro é dedicado a Joseph Brodsky, poeta russo que recebeu o Nobel de Literatura em 1987 e um dos amigos mais próximos de Sontag; e a epígrafe é de Beckett, da peça Fim de partida, outra referência central para ela (que, em 1993, durante a Guerra da Bósnia, dirige uma montagem de Esperando Godot em Sarajevo).

Sob o signo de Saturno reúne os principais ensaios de Sontag, selecionados por ela e publicados entre 1972 e 1980 em periódicos como The New York Review of Books e The New Yorker. Além de Benjamin, surgem outros autores e obras que acompanham o seu percurso intelectual, com destaque para Barthes (a quem dedica um belo ensaio após sua morte, agora disponível em Questão de ênfase), Elias Canetti e Antonin Artaud. Há ainda ensaios sobre o cineasta Hans-Jürgen Syberberg, o escritor Paul Goodman e a cineasta Leni Riefenstahl.

‘Para realizar um trabalho, é preciso ser solitário — ou, pelo menos, não estar preso a nenhum relacionamento’

Os ensaios de Sontag buscam iluminar não apenas a região imediata da obra da qual se ocupa, mas também seu contexto e suas relações possíveis. Sobre o filme de Syberberg, por exemplo, diz que é “assombroso pelo caráter arrojado daquilo que alcança” e “embaraçoso”, “como um bebê indesejado na era do crescimento populacional zero”. Isso porque “o modernismo revelou-se agudamente compatível com o éthos de uma sociedade de consumo avançada”, privilegiando obras de consumo rápido. Assim, “gerar uma obra-prima parece um gesto retrógrado”, e toda “Grande Obra” é “um ser estranho”: insiste que “arte deve ser verdadeira e não apenas interessante; uma necessidade, não apenas um experimento”. Lendo Sob o signo de Saturno do início ao fim, percebe-se que esse juízo se aplica de forma mais ou menos homogênea ao olhar crítico de Sontag: ela dedica sua atenção a obras que escapam do “gosto contemporâneo”, sensibilidade que “lança o público num estado de crise”.

Sontag também investe em detalhadas radiografias/cartografias de certas mentalidades — como as de Benjamin e Elias Canetti. São os dois melhores ensaios do livro, seja pelo modo como Sontag atravessa suas obras, colhendo sinais reveladores, seja pelo modo como verticaliza a análise de certas obsessões (a melancolia em Benjamin, a paixão em Canetti). “Tão dedicada é a relação de Canetti com o dever e o prazer de admirar os outros, tão meticuloso é seu senso da vocação de escritor, que a humildade — e o orgulho — o tornam extremamente autocentrado, porém de forma caracteristicamente impessoal”, escreve. “Sua preocupação repousa em ser alguém que ele mesmo seja capaz de admirar.” Canetti (e o mesmo pode ser dito da própria Sontag) constantemente “instiga a si mesmo com o exemplo dos grandes mortos”, estabelecendo um regime de trabalho implacável, “identificando a necessidade intelectual daquilo que ele empreende” e “verificando sua temperatura mental”.

Contradição

Os ensaios frequentemente tocam no que pode ser definido como o paradoxo inerente à condição melancólica: quanto mais se afasta de seus semelhantes, melhor o artista percebe sua obra; mas, ao se afastar da comunidade, distancia-se também das energias urgentes de seu tempo. “A necessidade de ser solitário — a par da amargura com a própria solidão — é elemento característico do melancólico. Para realizar um trabalho, é preciso ser solitário — ou, pelo menos, não estar preso a nenhum relacionamento permanente”, escreve sobre Benjamin. A solidão conduz à amargura e à fertilidade intelectual, e nessa oscilação se desenvolve boa parte da arte modernista e contemporânea da qual se ocupa Sontag. 

É possível conferir em seus Diários como o conflito entre isolamento e sociabilidade era central também para ela. Como acontece com todo grande trabalho ensaístico, em Sob o signo de Saturno Sontag fala de si ao falar do outro, comentando indiretamente as próprias escolhas estéticas ao analisar os caminhos artísticos alheios. Podemos pensar o trabalho de Sontag a partir deste juízo muito preciso que ela registrou sobre Barthes: “Toda a sua obra é um trabalho de autodescrição imensamente complexo”.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.