Literatura,

O lugar exato da estranheza

‘Montevidéu’, de Enrique Vila-Matas, é um território híbrido que nos faz transitar pelo que não sabemos

01fev2024

Pela janela aberta entram os sons do bairro que acorda lento: alguém que usa uma furadeira no sobradão ao lado; o motor de ônibus que arranca depois de recolher um ou dois passageiros; pássaros que se intercomunicam antes do calor úmido do meio-dia; e a moto que se sobressai e deixa atrás de si um rastro de silêncio. Uma atmosfera sonora que envolve a cidade esvaziada nos primeiros dias do ano, por onde perambulam os que tocam um preguiçoso dia de trabalho aguardando o informe da meteorologia que autorizará, ou não, a escapada para o balneário próximo, quem sabe fincar o guarda-sol nas areias à beira do rio, que aqui chamam de mar. Um lugar que poderia ser como qualquer outro nessas mesmas circunstâncias: apenas a capital de um país latino-americano espremido entre vizinhos gigantes, agraciado pela baixa demografia, pela história peculiar, por algo que perpassa ao longo do tempo, sua pacatez.


Montevidéu, de Enrique Vila-Matas

Pelas ruas de Montevidéu caminha o narrador do romance mais recente de Enrique Vila-Matas, um retorno do melhor Vila-Matas, como se pode dizer dos vinhos, ou de algo que se espera com ansiedade infantil. O livro recebe como título justamente o nome da cidade que irá designar muito mais do que a maior das tão pequenas cidades uruguaias. “Montevidéu era uma cidade, mas também um estado de ânimo, uma forma de viver em paz fora do convulsionado centro do mundo”, diz a certa altura o narrador, um escritor que anda pelo mundo às voltas com mistérios e angústias da criação literária e encontra, em Montevidéu, a chave para a compreensão de algo maior.

Diante do hotel, vejo a placa indicando que ali estiveram Borges, Bioy Casares, Cortázar

Mas vamos com calma, pois uma cidade se descobre aos poucos, abrindo a janela, saindo à rua, virando uma esquina e depois outra, seguindo em frente, olhando para cima, sem descuidar dos buracos na calçada. Neste livro, a viagem a Montevidéu ocorre já avançadas muitas páginas: há primeiro rememorações de mais de uma temporada em Paris, ecoando certa festa hemingwayniana, logo uma breve estada em um hotel de Cascais, para então chegar ao centro de gravidade do romance, que ainda vai passar exatas seis linhas por Reykjavík, algumas páginas por Bogotá e se encerra em Paris, num arranjo circular que nos faz terminar, altamente modificados, no mesmo lugar em que começamos. Desde o início, a epifania anunciada: 

Comecei a pressentir que poderia viver alguns dias em Montevidéu de um modo parecido a como às vezes costumo ouvir o rádio: esperando a próxima canção, a canção que possa mudar um pouco, se não minha vida, pelo menos a manhã.

O itinerário montevideano facilmente pode ser repetido: a rambla, que margeia o rio da Prata (passeio contado como um momento “magnífico”); a avenida Dieciocho de Julio com o que lhe sobra de art nouveau; ali o Palácio Salvo; logo mais o Teatro Solís; e alguns rincões da Ciudad Vieja, como o quarteirão onde supostamente nasceu e viveu, ainda nos 1800, Isidore Ducasse, o tão misterioso Conde de Lautréamont. Algum ou outro restaurantezinho nas cercanias da Plaza Independencia, e em um deles uma fatia de chajá de sobremesa (“extraordinária”), para ficar nas iguarias típicas, poder contar que se empanturrou com diversas manifestações do açúcar.

Obsessão

Nesse caminho trilhado por tantos pés de turistas entre encantados e aborrecidos, aparece uma obsessão. Guiado por um anfitrião gentil, que recebe o narrador para uma conferência sobre escrita, partilhamos dos pensamentos do personagem que tenta ocultar, com sarcasmo e bom humor, seu bloqueio implacável na escrita. Um escritor que não escreve e que, ao refletir sobre seu recente estado ágrafo, erige um romance vertiginoso, como soem ser os livros do autor catalão. Já a obsessão percorre todo o livro: atravessar uma porta muito particular, uma porta condenada, tal como o título do conto de Julio Cortázar publicado em 1956.

O escritor, ao refletir sobre seu recente estado ágrafo, erige um romance vertiginoso

No conto está Petrone, um argentino que vem a Montevidéu para contactar fabricantes de azulejos e se hospeda, tal como fez o próprio Cortázar algum dia, no hotel Cervantes. O quarto, pequeno, continha uma porta inutilizada, escondida atrás de um armário. Ao se deitar, ele pensa ouvir, do quarto contíguo, um choro de criança. Na segunda noite, escuta uma mulher tentando acalmá-la. Confronta o gerente, que confirma que há uma única hóspede além dele naquele andar, uma jovem, e que não há bebê algum. Na terceira noite, Petrone se irrita e imita os gemidos da criança — o que aparentemente faz com que a mulher deixe o hotel. Chega a quarta noite — e é preciso ler o conto para ver, ali, o que a crítica literária Beatriz Sarlo chamou de “o lugar exato em que o fantástico irrompe no conto de Cortázar” — e é esse o lugar perseguido pelo narrador de Vila-Matas: 

Um dia irei a Montevidéu e procurarei o quarto do segundo andar no hotel Cervantes e será uma viagem real ao lugar exato do fantástico, talvez o lugar exato da estranheza.


O escritor catalão Enrique Vila-Matas [Olivier Roller/Divulgação]

Tanto faz que inclui o hotel Cervantes — a esta altura reformado e com outro nome, Esplendor — no itinerário. Tanto faz que consegue se instalar naquele mesmo quarto, o 205. E ali passa ele mesmo a irromper numa experiência fantástica — primeira vez também na obra de Vila-Matas. O narrador confronta a porta, abre, encontra atrás da porta uma mala vermelha, uma aranha morta (das gigantes, uma mígala), desconfia do que vê, teme o que vê, convive com essa imagem do quarto contíguo, somando-a a outras experiências anteriores. E, também, vindouras, já que sua amiga Madeleine Moore, personagem de uma artista performática, faz com que reviva essa experiência de se isolar em um quarto e perscrutar o contíguo em uma exposição feita por ela para ele em uma sala do Pompidou, em Paris. Madeleine o submete a ouvir os próprios pensamentos em um áudio com trechos de livros dele já publicados, como quem o empurra a sair do seu bloqueio. Grosso modo, tão grosso modo. É preciso ler para ver como, em Montevidéu, o narrador investiga o que acontece “quando alguém entrava num espaço de ficção que também existia no mundo real ou, em outras palavras, num espaço do mundo real que não seria nada sem um mundo de ficção, e vice-versa, e assim até o infinito”. Se parece uma manobra familiar ao autor, talvez este livro agudize essas fronteiras e consolide um território híbrido, que nos põe em dúvida, que nos faz transitar pelo que não sabemos. 

Chega a noite, e passo em frente ao Esplendor, na calle Soriano, depois de uma longa caminhada pela rambla atiborrada de gente. “As casas, o porto, as ruas, as praias emitiam sinais de uma calma incomum, memorável, que levava as pessoas a sentir que na verdade haviam chegado a uma cidade em que se poderia, inclusive, morar”, li no Vila-Matas. Paro diante do hotel, vejo a placa que indica que ali estiveram Borges, Bioy Casares, Cortázar. Estou no quarto 205. Empurro o armário, desvelo a porta condenada. Abro e, quando os olhos se acostumam à escuridão, reconheço a mala, a aranha morta. Preciso fechar essa porta rápido, há um bebê que chora e requer o meu conforto.

Quem escreveu esse texto

Gabriela Aguerre

É jornalista e autora de O quarto branco (Todavia, 2019).