Literatura,

O lixo é imortal

Romance tcheco sobre escritor censurado durante o regime comunista, escrito nos anos 80, faz denúncia social e antecipa alertas ambientais

27out2022

Para os brasileiros, que sabem de garis passistas, garis parteiros e garis pais de santo, o romance Amor e lixo, do tcheco Ivan Klíma, à primeira vista pode não parecer grande coisa. Mas é. O narrador e protagonista do livro é um gari escritor. Ou melhor: escritor gari, que passou a varrer as ruas de Praga após ter sido censurado pelo regime comunista e não poder mais exercer devidamente sua profissão principal. A despeito da advertência indicar que se trata de ficção, o autor confunde-se bastante com esse narrador. Ambos têm ascendência judaica e foram enviados para campos de concentração nazistas — Klíma passou a pré-adolescência em Terezín, campo 48 quilômetros ao norte de Praga, onde ficou quase quatro anos. No pós-guerra, com a ocupação soviética na então Tchecoslováquia (hoje República Tcheca e Eslováquia), assim como sua personagem, Klíma foi considerado um radical e precisou dirigir ambulâncias e auxiliar tipógrafos.

O narrador vê em seu novo posto, que para muitos poderia ser percebido como uma degradação, uma chance de reparar em peculiaridades, como o fato de que, enquanto a multidão usa o espaço público para ir e vir do trabalho, eles, os garis, cumprem lá seu expediente. A observação não diz muito, a menos que faça pensar: alguém que tem a rua como escritório, quando sai de casa em seu tempo livre, está submetido a folgar justamente onde trabalha.

Os colegas de serviço do narrador são figuras excêntricas. Entre eles há um maneta, chamado de “capitão”, inventor de bugigangas tão cheio de poesia quanto um bom poeta. Projeta moinhos estranhos, voadores, como se para proporcionar fantasia aos Quixotes do mundo. A perda da mão foi causada por um acidente de trabalho em uma fábrica, motivo similar ao que deu a outro colega uma saúde criticamente debilitada. De maneira implícita, o romance expõe as condições dos subempregos e denuncia como a mão de obra muitas vezes se sacrifica pelo alheio ou por nada, literalmente.

As entrelinhas de ‘Amor e lixo’ estão preenchidas com a tentativa de compreensão da morte

Livre de condescendência, o protagonista escuta as histórias contadas por seus pares, alguns deles também exímios narradores, com quem se embriaga em tavernas além de pegar pesado na vassoura. Há sincero amor, menos passional e mais benévolo, do narrador para com esses personagens, e nisso está o ponto alto do livro.

Havia decidido convidá-lo para uma boa refeição, mas na taverna a que fomos tinham apenas um salame barato, pão e cebola, embora ao menos pude pedir vinho. Em nossa conversa não fazíamos mais que pular de uma anedota a outra, continuávamos ocultando o mais importante em nosso interior.

O escritor gari poderia utilizar a situação como laboratório e os envolvidos como objeto, como muitos narradores que exibem inacreditável indiferença em relação a seus personagens. Não é o caso aqui, nem de longe. O narrador de Klíma, enquanto à mesa ou nas ruas, não senta em cadeira mais alta nem sequer sobe um meio-fio acima dos outros.

Mesmo com o trabalho de varrição, o narrador está às voltas com a escrita de um ensaio sobre seu conterrâneo Franz Kafka, mencionando-o logo na primeira página, e sobre cuja obra discorre por toda a narrativa. Intercala fatos de sua vida social com teorias sobre novelas kafkianas e, com a teorização sobre Na colônia penal, faz os leitores pensarem na recorrente charada: quem veio antes, o ovo da ficção ou a galinha da realidade?

Fragmentos

Amor e lixo exige a atenção dos leitores para que os fragmentos não se intriquem, já que graficamente nada os diferencia; às vezes, é preciso parar e reler para entender que a narração mudou de tempo e espaço, sem alerta. O texto vai de questões trabalhistas a complicações de um triângulo amoroso; e, escrito na década de 80, quando a população mundial contava cerca de 3 bilhões de pessoas a menos, passa também por preocupações ambientais:

Matéria alguma desaparece; no máximo, pode mudar de aparência. O lixo é imortal: flui pelo ar, incha na água, dissolve-se, apodrece, transforma-se em gás, fumaça, fuligem, viaja pelo mundo e subjuga-o de modo paulatino.

As entrelinhas de Amor e lixo estão preenchidas com a tentativa de compreensão, ou até mesmo de aceitação, da morte. A quase obsessiva investigação do romance é de como a alma humana está ligada à imagem poética da imortalidade do lixo — o que sobra do corpo continua vivo em essência e se transforma. Mania de limpeza pode nem sempre ser eficaz, como lembra o narrador:

Usei o uniforme laranja, porque desejava purificar-me. O homem deseja limpar-se, mas em vez disso põe-se a limpar seu entorno. Enquanto não limpa a si próprio, porém, inquieta-se em vão com o mundo à sua volta.

Parte da geração de escritores tchecos que inclui Milan Kundera, Václav Havel e Bohumil Hrabal, Klíma teve livros publicados apenas fora do país ou em samizdat — prática de autopublicação e circulação clandestina de livros na União Soviética. Lançado oficialmente somente após a Revolução de Veludo, que em 1989 derrubou o regime comunista na Tchecoslováquia, Amor e lixo é publicado agora no Brasil pela editora Carambaia, com excelente tradução de Aleksandar Jovanović. A edição contém ainda uma longa conversa do autor com o norte-americano Philip Roth, traduzida por Paulo Henriques Britto, esclarecedora quanto ao contexto político e a questões literárias da época, e que por fim revela a “vivacidade e impassibilidade” do escritor por trás do gari.

Quem escreveu esse texto

Luis Campagnoli