Literatura,

O centro da dor

Em elaboração literária do luto pela filha, Tiago Ferro se expõe sem medo de correr riscos e questiona os clichês sociais ligados à morte

15nov2018

“As pessoas gostam de contemplar os sobreviventes. Na verdade, é desagradável, mas irresistível, olhar a carne exposta, os chumaços de cabelo queimados, os membros decepados.” Na elaboração literária do trabalho de luto pela perda da filha, Tiago Ferro sobe no palanque das emoções, acerta a luz na direção dos olhos e expõe o seu próprio corpo. As feridas, os pensamentos mais ocultos, o absurdo, os absurdos, o caos da dor. Sem nada a perder, se transforma no livro-homem, em carne viva, escrita-desabafo que ganha a empatia do leitor sem requisitá-la. 

Empatia está longe de ser pena, não há condolescência nem lamentação. O autor, que escreveu em um artigo na revista Piauí “não quero ser o pai da menina falecida”, agora assume, no título, o rótulo completo, talvez por perceber ser impossível fugir dele. A troca de “falecida” por “morta” não é mera semântica. Sugere a incorporação viva do tabu da morte.

O autor está pouco se lixando para aceitações e oferece uma intimidade visceral. Escritores muitas vezes tentam ser verdadeiros, autênticos e sinceros, sem pudores nem medo de como os outros vão julgar este ou aquele pensamento, ainda mais quando escrevem em forma de diário, sobre um caso conhecido, que foi midiatizado e comentado. 

Tiago é pai de Manu, menina de oito anos que morreu em consequência de uma gripe. A febre alta pode ter levado a uma miocardite aguda. O coração parou. Não é à toa que Tiago abre o livro com uma frase de Karl Ove Knausgard: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para”. Classe média alta, branca. Virou a temida estatística.

Tiago apresenta dilemas profundos: “Com quantos anos a minha Outra Filha vai morrer?”. Não há perguntas constrangedoras nem pensamentos proibidos. Essa liberdade deve ter sido difícil de alcançar. Ou talvez seja o oposto. Pode ter sido mais fácil. Quem perdeu tudo não tem mais nada a perder. Pior do que está não fica. Clichês assim não fazem parte do livro. Ele dissipa zonas de conforto ou respostas-padrão. É inspirado no luto, mas não é só sobre o luto.

A escrita é aparentemente desconexa, como a sessão de um filme do Godard (quando ele e a mulher discutiram se teriam filhos ou não), ou do David Lynch. Somos envolvidos por uma névoa de Twin Peaks, velhas cortinas vermelhas, frases soltas, associações livres que mantêm tensionado o fio da narrativa. Fio grosso, para não perder o leitor. Um mundo paralelo, cheio de referências que se comunicam. Caminhamos junto, entendemos de onde o autor partiu e para onde foi.

Vida anterior

O livro é um convite para mergulhar num buraco sem fundo, revestido por memórias de uma vida anterior, a desse homem quando ainda não era pai, o homem que precede a filha e continuará a existir sem ela. O homem-memória, que vê a filha se transformar nisso também, em memórias afetivas, flashes de intimidade e dedicação.

Esse pai que perdeu a filha não está sozinho e, com certeza, perceberá isso com a reação ao livro. Não só a de quem já perdeu um filho, nem a de todos os órfãos que já perderam os pais, mas também os que se sentem amputados emocionais. Pode haver também, o autor identificou, a projeção dos que vão suspirar em alívio. “As pessoas gostam de assistir a filmes de veteranos de guerra pelos mesmos motivos. Quando acaba a sessão, dá vontade de chorar, mas depois de quinze minutos, na fila para o pão de queijo com café, parece que tudo está no seu devido lugar. Eu me tornei esse filme de guerra. Não me importo.”

Das diversas imagens que permeiam a narrativa, fiquei grudada na do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, o primeiro homem a ir para o espaço. O primeiro a ver a realidade, a enxergar o planeta pairando sobre o nada. Sem respostas milagrosas, a vida continua não fazendo sentido. Como voltar à Terra depois de presenciar o lado de fora? De contemplar a brutalidade do vazio profundo? A dor parece esse choque, essa viagem num foguete que desnorteia. Depois do trauma, da implosão, não é possível se readaptar. Gagarin não conseguiu. Mas talvez nunca tenha tentado. 

O livro pode ser uma tentativa de conseguir ser incluído nessa realidade a partir do momento em que ela se comunica, e há identificação, gratidão. Principalmente daqueles que também perderam filhos, essa comunidade secreta, anônima, que se sente constrangida onde quer que passe. Porque estar em luto é um baita constrangimento. Não do enlutado, mas dos outros, que pisam em ovos, medem as palavras, tratam o enlutado como um doente. Esse pai foi escrever para poder dizer o que já não pode mais falar em público.

É um livro onírico, que traz a liberdade dos sonhos de não distinguir a realidade da ficção, o passado do presente. Emociona e ao mesmo tempo apresenta um humor irônico, que joga certa leveza em algumas interpretações e também oferece… tesão. Cenas de sexo, pensamentos em gozo, uma analogia constante. 

Não se trata de acaso nem de fuga. Os franceses se referem ao orgasmo como la petite mort. A pequena morte no gozo é uma entrega ao desconhecido, à perda de controle e à aceitação do medo primordial. 

Estar em luto é um baita constrangimento. Não do enlutado, mas dos outros, que pisam em ovos, medem as palavras, tratam o enlutado como um doente

Outra característica em comum entre sexo e morte é pisarmos em ovos quando falamos a respeito. Usamos eufemismos. Sexo é “fazer amor”, orgasmo é “clímax”. Morrer é “falecer”, “ir para o céu”, “bater as botas”, “virar estrela”. Ainda há a famosa analogia psicanalítica. Freud diz em seu livro Além do princípio do prazer (1920) que “o objetivo da vida é a morte”. Levaríamos a vida oscilando entre instintos de vida, sexo (Eros), sobrevivência, e de morte, fim, transformação e autodestruição (Tânatos).

Se revisitamos a nossa vida na hora da morte, não sei. Pode ser uma lenda de Hollywood. Mas a morte da filha parece ter incitado o autor a revisitar a dele nesse livro de memórias, que narra cenas da juventude, do primeiro beijo, aos catorze anos, da visita à China com um amigo, o encontro com o corpo de Mao Tse-tung, exposto em seu mausoléu.

O desnorteamento que uma tragédia causa antecede a busca por sentidos estáticos, pelo imutável. O livro é cheio de verbetes, de definições que nos orientam em um mundo imprevisível. Em um fim imprevisível. 

A morte não espera o término de um movimento, a conquista de um sonho, a realização de um plano. A morte nos pega desprevenidos, assusta como a figura do lobo branco que tanto aterroriza o autor. O lobo branco se camufla no céu do dia. Não é perigoso de noite, ameaça durante o dia, quando não o vemos chegar. Ele se esconde na luz. 

Listas

O livro é cheio de listas: há listas de supermercado, com produtos intercalando emoções, “queijo para o café da manhã, café em pó, não chorar, farinha para tapioca, cuidar da minha Outra Filha”, há uma lista que consegue fazer poesia com números: 39°, 38,7°, 36,5°, 36,8°, 0°. 

Na “lista dos possíveis títulos para esse livro”, destaquei este: “O centro da dor”. Achei interessante porque o livro sugere o oposto. Sugere que a dor não tem centro. É dispersa, é um mosaico de associações livres, entre a rotina e a ficção, o real e o onírico, a dor e a não dor. A calmaria do ferimento tratado e a tormenta que sobrevém quando ele se abre novamente. Não há centro, há movimento. 

Há um nexo entre o hábito de fazer listas e a morte. O escritor italiano Umberto Eco (1932-2016), decidido a investigar a “natureza essencial das listas”, disse que elas são uma forma de tornarmos o infinito compreensível. O hábito seria fruto do medo da morte: “Nós temos um limite, muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos das coisas que assumimos não ter limites e, assim, sem fim. É uma forma de escapar pensamentos sobre morte”.

A sociedade não está preparada para lidar com a morte. Tiago nos mostra isso. “O Pai Leproso. A maioria das pessoas não quer chegar perto. Isso pega? Qualquer gesto meu é superinterpretado num nível de paranoia e exegese. Quando estou apenas calado, estou deprimido. Quando eu converso alegremente, estou tentando apagar o passado. Se eu tenho uma ereção, é uma compensação típica do luto. Se eu como pouco, é bom ir ao médico. Se eu como muito, é bom ir ao médico […]”. Não sabe como se comportar. Sente culpa, dor, desespero, busca conforto em dogmas, catarse na escrita. Ele se vê preso num paradoxo brutal: “Quando me esqueço da dor, me afasto da minha filha”.

São dilemas que ninguém gostaria de ter. Mas essa leitura não fala só sobre o luto, fala sobre um ser humano transformado num personagem que a sociedade moldou para acalmar suas próprias tristezas. Remete a todos nós, os esburacados emocionalmente, que somos feitos de ar, desses vazios que Tiago identifica e não tem medo de assoprar.

Quem escreveu esse texto

Camila Appel

É escritora, fundadora do blog Morte sem Tabu, roteirista da TV Globo e documentarista.