Literatura,

Nova velha história

Romance septuagenário de autora que inspirou Ferrante traz reflexão atual sobre questões que ainda nos afligem

27jan2023 | Edição #67

O que seria capaz de fazer uma típica esposa e mãe dos anos 50 escapar do rolo compressor da dinâmica familiar e olhar para si? No romance Caderno proibido, o motor da transformação de Valeria Cossati é a escrita. Aos 43 anos, a protagonista divide seu tempo entre o cuidado da família e o emprego em um escritório. Trabalha fora apenas para incrementar a renda, tem regras morais bastante rígidas e ainda se ocupa da rotina e dos desejos dos filhos, que já são jovens adultos. É o estereótipo de mulher exemplar até que começa a escrever um diário às escondidas.


Caderno proibido traz reflexão atual sobre questões que ainda nos afligem

Adquire o objeto em um domingo, quando sai logo cedo para comprar cigarros para o marido. Volta para casa, mas não sozinha. Naquela tabacaria era proibido vender qualquer coisa além de tabaco aos domingos, mas Valeria ficou encantada com os “cadernos pretos, luzidios, grossos” que viu na vitrine. Eles, afinal, a fizeram lembrar do material escolar onde escrevia, “com entusiasmo”, o próprio nome. Acabou convencendo, então, um funcionário a vender um deles.

Tirada a roupagem de época, vemos que os conflitos da protagonista persistem nas histórias atuais: a dificuldade para achar a mulher dentro da mãe

Começa assim o romance da ítalo-cubana Alba de Céspedes (1911–97), publicado inicialmente em episódios pelo periódico italiano La Settimana Incom Illustrata, entre 1950 e 1951. O livro chegou a ser editado no Brasil, mas esteve fora de catálogo durante mais de seis décadas. Voltou no último ano pela Companhia das Letras, com tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo. Aquilo que pode causar novo interesse pela obra fica claro nas primeiras páginas. Valeria pertence à mesma linhagem de boa parte das personagens femininas recebidas com entusiasmo por leitoras, leitores e pela crítica de hoje. Tirada a roupagem de época, vemos que os conflitos da protagonista persistem nas histórias atuais: a dificuldade para achar a mulher dentro da mãe; a complexidade da relação com os filhos e, sobretudo, com a filha; a falta de espaço para construir algo só seu; o desconforto de viver em um mundo que tenta convencer a mulher de quarenta anos de que, para ela, a sexualidade morreu, enquanto o corpo, ao contrário, está vivendo uma nova ebulição de erotismo.

A escrita acaba por se tornar algo tão libidinoso e perigoso quanto encontros com um amante

É como se Valeria fosse a mãe de uma das protagonistas de Elena Ferrante, por exemplo. A autora dos best-sellers A amiga genial (Biblioteca Azul, 2015) e A filha perdida (Intrínseca, 2016), aliás, cita Céspedes como uma de suas influências. A referência está em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora (Intrínseca, 2017), primeiro título de não ficção de Ferrante lançado no Brasil. Nele, a autora discorre, em cartas e entrevistas, sobre seu processo de escrita, entre outros assuntos. Ali, porém, menciona outra obra de Céspedes, Dalla parte di lei (Do lado dela, em tradução livre), que também trata do universo feminino.

Apenas Valeria

Apesar das semelhanças, lida nos dias de hoje, a história de Valeria não tem o poder de causar tanto desconforto quanto as personagens de sua sucessora. Não rouba bonecas, não abandona a prole nem mantém uma relação muito conflituosa com a melhor amiga. Os dilemas da protagonista de Caderno proibido são mais sutis — o que não significa menos interessantes. O romance é o percurso de uma mulher comum que, à medida em que escreve seu diário, vai desvelando aquela que estava escondida atrás de uma função. Logo nas primeiras páginas, reflete:

Ao reler o que escrevi ontem, acabo me perguntando se não comecei a mudar de índole a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de ‘mamãe’. No início gostei muito, porque assim me sentia a única adulta em casa, a única que já soubesse tudo da vida. […] Mas agora compreendo que foi um erro: ele era a única pessoa para a qual eu era Valeria.

O diário ganha status de personagem e passa, então, a ocupar o lugar que um dia foi o do marido. Nele, Valéria pode ser apenas Valeria. Só que a escrita acaba por se tornar algo tão libidinoso e perigoso quanto encontros com um amante. A personagem conta as horas para encontrar um momento de sossego e ficar a sós com o caderno; vara madrugadas escrevendo enquanto todos dormem; arruma desculpas para não ir a eventos familiares e poder ficar em casa sozinha; se tranca no banheiro ou arma esquemas para não ser surpreendida durante o ato.

Antes de sentar de novo para escrever, passei a corrente na porta, pensando que sempre poderia dizer que o fiz por distração.

Nas páginas do romance, que é o próprio diário, acompanhamos seis meses (de novembro de 1950 a maio de 1951) da vida de Valeria. Além de um bom retrato da mulher naquela época, ficam evidentes também as linhas de pensamento sobre a condição feminina que surgiram na primeira metade do século passado, encabeçadas por nomes como Virginia Woolf (1882–1941) e Simone de Beauvoir (1908–86), e que se mantêm atuais. Diante das dificuldades para escrever com liberdade e tranquilidade, Valeria escreve: “Sonho ter um quarto só para mim”.

Impossível não lembrar do ensaio ficcional “Um teto todo seu”, publicado por Woolf em 1929, em que a inglesa discute os obstáculos que impedem a mulher de desenvolver uma carreira artística. Os conflitos de Valeria também estão alinhados às questões levantadas por Beauvoir em O segundo sexo (1949), sobretudo aquilo que diz respeito à relação de Valeria com a filha, Mirella. Para esmiuçar a ideia que está por trás da célebre frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, a pensadora discorre sobre como, ao replicar a receita patriarcal de feminino, as mães acabam estabelecendo uma relação conflituosa com a prole. Diz:

A filha é para a mãe ao mesmo tempo seu duplo e uma outra, ao mesmo tempo a mãe a adora imperiosamente e lhe é hostil; impõe à criança seu próprio destino: é uma maneira de reivindicar orgulhosamente sua própria feminilidade e também uma maneira de se vingar desta.

É justamente o que acontece em Caderno Proibido. Em um processo de alteridade, Valeria identifica em Mirella o mesmo erotismo pulsante que está dentro de si. A garota também está apaixonada, mas se nega a frear o sentimento ou a condicionar seu futuro às amarras sociais, o que coloca a mãe constantemente em xeque. Recriminar e tentar controlar a moça acaba sendo, ao mesmo tempo, dever de mãe zelosa e uma espécie de autocensura.

O romance é o percurso de uma mulher comum que, à medida em que escreve seu diário, vai desvelando aquela que estava escondida atrás de uma função

Apesar dos seus mais de setenta anos, Caderno proibido merece ser lido com o frescor de um romance recém-escrito, que permite uma reflexão sobre o nosso tempo e as questões que, apesar dos avanços da luta feminista, ainda nos afligem. Além disso, o livro tem méritos atemporais e que extrapolam qualquer questão de gênero — trata-se de uma obra sobre o poder da escrita, como lemos nos registros de Valéria:

Nunca poderia acreditar que tudo o que me acontecesse ao longo do dia merecesse ser anotado. Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças. Mas, desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos acostumados a considerar como tais.

Seu diário prova como o ato de escrever pode transformar até as vivências mais prosaicas em literatura.

Quem escreveu esse texto

Giuliana Bergamo

É jornalista e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.