Literatura,

Naturalismo abissal

Influenciado pelo ocultismo, romance que criticou a escola de Zola é boa porta de entrada para o singular universo ficcional de Huysmans

28nov2018

A publicação em 2018 de Nas profundezas, de Joris-Karl Huysmans, clássico do fin-de-siècle francês, representa uma reparação histórica. Um autor dessa relevância, cuja influência foi sentida na literatura de todo o Ocidente, seja de forma direta (Houellebecq), seja indireta (Paulo Coelho), deveria estar disponível em nossas livrarias e bibliotecas há décadas. 

Até então, o único livro do autor localizável no mercado brasileiro era o radical Às avessas (1884), que, na tradução de José Paulo Paes, aparecia em um português datado, quase arcaico. Nesta tradução de Nas profundezas, Mauro Pinheiro recupera a fluidez do original para revelar um autor muito diferente. 

Às vésperas da virada do século 19 para o 20, a França estava apaixonada pela obra de Émile Zola, que havia se tornado um autor inescapável para a crítica e para o público. De forma consciente, o autor buscou constituir uma escola literária ao determinar as diretrizes do naturalismo. Para Zola, a literatura deveria retratar a vida como ela era, cabendo ao autor desaparecer atrás do panorama histórico. Seu Germinal foi a semente de um movimento que, no Brasil, deu cria: Aluísio Azevedo. As primeiras obras de Huysmans seguiam à risca o estilo de Zola, visto como um mentor. 

Em 1884, no entanto, o discípulo se revelou um iconoclasta, um intelectual munido de explosivos e disposto a minar todos os pressupostos teóricos que sustentavam o naturalismo do mestre. Às avessas é um antirromance, ou pelo menos uma obra antinaturalista. Trata-se de uma narrativa sem rumo. Seu protagonista, o esteta Des Esseintes, demonstra sua repulsa por tudo e por todos sem jamais sair de seu confortável divã. 

O leitor se vê preso ao ponto de vista de um dândi em constante enfrentamento com as tendências da época em que vive (podem-se traçar paralelos entre ele e os narradores raivosos de Thomas Bernhard). A cisão entre personagem e mundo em Às avessas é imensa e não oferece possibilidade de reconciliação — algo que György Lukács apontou como a marca mais distintiva do gênero romanesco em sua Teoria do romance (1916).

O próximo grande golpe de Huysmans (1848-1907) contra o naturalismo seria desferido sete anos depois com a publicação de Nas profundezas (1891). O romance começa justamente com um diálogo entre Durtal (alter ego de Huysmans) e seu amigo Des Hermies acerca dessa escola literária. O naturalismo repugna os personagens não apenas por questões formais; ele também representa uma tomada de posição política que endossa todo o materialismo levado à tona pela Revolução Industrial, o Iluminismo e as doutrinas positivistas. Esse ideário precisa ser enfrentado pelo protagonista Durtal, e tal embate será registrado por meio da própria ficção. 

Já no primeiro capítulo fica evidente que Huysmans foi um autor à frente de seu tempo: a discussão da literatura no cerne da própria ficção, no contexto de um romance cujas modulações formais encenam justamente as questões debatidas, parece um prelúdio para o tipo de romance que se popularizaria a partir dos anos 1980, com nomes como John Barth e Enrique Vila-Matas.

Ocultismo

Nas profundezas, contudo, não se reduz a questões teóricas, e tampouco é um romance voltado apenas a escritores e estudantes de letras. Durtal, insatisfeito com a cena literária, busca investigar a figura do crudelíssimo Gilles de Rais, que na Idade Média torturou, estuprou e matou dezenas de pessoas, em sua maioria crianças. Nas palavras de Huysmans, “no dia em que Durtal mergulhou no assustador e delicioso fim da Idade Média, ele se sentiu renascer”. O assassino serve de porta de entrada para que Durtal se interesse por ocultismo — o verdadeiro centro temático do romance.

A discussão da literatura no cerne da ficção parece um prelúdio ao tipo de romance que se popularizaria a partir dos anos 80 com John Barth e Vila-Matas

A ruptura com o naturalismo, pois, não representa apenas uma opção literária. “Quando o materialismo grassa, a magia se ergue”, reflete um personagem. No fim de século francês, a inovação tecnológica massiva despertou uma forte reação de doutrinas esotéricas como o espiritismo de Kardec, passando pela teosofia de Madame Blavatsky, até o satanismo teísta tematizado em Nas profundezas. Era difícil ficar imune — até mesmo os cientistas Marie e Pierre Curie frequentaram sessões espíritas e acreditaram que o contato com os mortos poderia ser a questão mais relevante da época. 

Missa negra

Joris-Karl Huysmans ficou conhecido pela sua conversão ao catolicismo: após a escrita de Nas profundezas, registrou sua jornada para se tornar oblato (leigo que serve em ordem religiosa) em La Cathédrale e En Route, que também trazem o personagem de Durtal. Em Nas profundezas, no entanto, o que seduz o narrador é a escuridão, o “caminho da mão esquerda”, os boatos de que o satanismo continuava vivo na França do século 19. A obsessão de Durtal por Gilles de Rais logo se volta para a possibilidade de testemunhar uma missa negra, o rito máximo dos satanistas. 

Durtal é um solteiro convicto, sempre às voltas com amantes e encontros sensuais. A princípio, o que o atrai no satanismo é o fato de que este se apresenta como uma rejeição aos costumes cristãos (e burgueses), glorificando o corpo de mulheres nuas em rituais em que a impureza do sexo é celebrada como passaporte místico para a catarse. O romance atinge seu clímax em uma descrição delirante da missa negra — cena que ficou famosa a ponto de inspirar inúmeros autores de terror.

Em parte romance sensacionalista de horror, em parte discussão literária e teológica, Nas profundezas talvez possa ser mais bem descrito como um precursor do “romance de ideias”. Esse é o argumento do teórico Stefano Ercolino, que usa o termo novel-essay (romance-ensaio) para apontar em Huysmans a semente que culminaria em O homem sem qualidades, obra máxima de Robert Musil que coloca em disputa constante a ciência e a metafísica, o escritor e o espírito do tempo. 

O contraste entre razão e surtos de irracionalidade que põem em risco toda a nossa civilização é um tema incontornável tanto na França de 1891 e na Áustria do entreguerras como no Brasil de 2018.

Quem escreveu esse texto

Antônio Xerxenesky

Escritor e tradutor, é autor de As perguntas (Companhia das Letras).