Literatura,

Legado legível

Quarenta anos depois, Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, segue como bula para a condição humana

01jan2023 | Edição #65

Livro do desassossego é daquelas obras que justificam a existência de uma literatura e de uma língua. Sorte dos países cuja pátria é a língua portuguesa. Texto inacabado e inacabável (por ser inesgotável) sobre a condição humana, seria um livro do pós-apocalipse; conservado em cápsula do tempo, prova de proeza do que a humanidade foi capaz de produzir. O devoto sugere a criação de uma Confraria do Desassossego. Se o Finnegans Wake instituiu a seita joyciana, o Livro do desassossego (retrato do Ulisses quando lisboeta) também pode. Pois (palavra de norma portuguesa para concluir uma evidência).


Livro do desassossego é daquelas obras que justificam a existência de uma literatura e de uma língua

Não fosse o estatuto insular do idioma português no mundo letrado de inglês e francês, o Livro do desassossego seria o livro de cabeceira de bardos atormentados como Baudelaire, Dylan Thomas, Hart Crane e Tsvetáieva. Em exercício de especulação anacrônica (ou antecipação retrospectiva), estaria no loquaz criado-mudo de Proust, Sterne e Hölderlin.

“Composto por Bernardo Soares”, como consta em publicação de 1930 assinada por Fernando Pessoa (que o julgava seu “semi-heterônimo” mais afeito de si), o Livro do desassossego foi escrito entre 1913 e 1934 em duas fases distintas e comunicantes, também pelo heterônimo Vicente Guedes. O trecho 222 (1929?) depõe: “Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indifferentemente a minha autobiographia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nellas nada digo, é que nada tenho que dizer”.

Com sua manha paradoxal, o autor tem muito a dizer, em obra tão abracadabra. O trecho 27 (1913?) propõe: “Assim organizar a nossa vida que ella seja para os outros um mysterio, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros”. Se o Livro é o projeto testamental e prospectivo de Mallarmé, o Livro de Pessoa é seu legível legado: “Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apreçado pelo peso entre os postscriptos do perdido” (1929?).

A edição de Jerónimo Pizarro tem criteriosa cautela com as emendas ao texto. Mantém a grafia de origem, o que dá uma lúcida inquietude à leitura. Para Pizarro, o Livro faz-se de frases provocadoras de estranheza, não só pela discordância gramatical. Ao ler “este incerto movimentos” (1930), inevitável vir Manuel Bandeira (“Pensão familiar”, 1925): “os girassóis/ amarelo!/ resistem”. Fascina a consciência de linguagem, exemplar quando Pessoa-Soares analisa seu “systema de estylo” (1930). Para o editor, há uma abundância incomum de imagens, distinção mais de poesia que de prosa. Mas o autor declara preferir “a prosa ao verso, como modo de arte”, por questão de liberdade técnica (1931).

O livro de Pessoa é a peça de teatro que Samuel Beckett talvez quisesse ter escrito

Aforismos-falésia indagam o visível da adivinha: “Ah, como as cousas quotidianas roçam mysterios por nós!” (1913?); “Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações do Mysterio, mas directamente como florações da Realidade” (1930). Sob “uma designação indifferente na algebra do mysterio” (1929?), guarda-se senso agudo do fenômeno literário: “Toda a literatura consiste num exforço para tornar a vida real. […] Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escripta e a imagem intellectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores suppostos e vaidades facticias, subterfugios da digestão e do esquecimento” (1930). Como livro de imagens, é um espetáculo de espantos.

motto rimbaudiano (“eu sou um outro”) volta em dialeto pessoano: “Viver é ser outro” (1930). Entre as tantas vidas fingidas de Pessoa, aquela à guisa de Bernando Soares é a mais atual, em projeção contemporânea, de intertextualidade e transcontextos: “Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste” (1933), escreveu, constelado. Pizarro, que arroga o crédito da autoria ao ortônimo, enxerga uma confissão em primeira pessoa, flaubertiana (“Madame Bovary, c’est moi”): “Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo” (1931).

Livro do desassossego é a peça de teatro que Samuel Beckett talvez quisesse ter escrito (para Bob Wilson encenar, claro). Foi levado às telas por João Botelho, como Filme do desassossego (2010). Se, para Aby Warburg, a história das imagens é a “história de fantasmas para gente grande”, o Livro é autoajuda para gente adulta e inteligente. Seguindo as especulações alegóricas, Freud teria um exemplar no divã e o trecho 56 (1914?) estaria no pórtico do consultório: “Ser lucido é estar indisposto comsigo proprio”. O cartão de visita traria: “Ficámos, pois, cada um entregue a si-proprio, na desolação de se sentir viver” (1917?). O Livro é uma bula para a anamnese artística e uma bússola para quem crê que navegar é preciso.

Cidade

Colega do escrivão Bartleby de Herman Melville, do bibliotecário de Jorge Luis Borges e do revisor de livros juramentado de Walter Benjamin, Bernardo Soares é um ajudante de guarda-livros em Lisboa. A cidade é a personagem do Livro, que se lê como versão literária do ciclo de documentários conhecido por “sinfonias da cidade”, com filmes como Manhatta (1921, Paul Strand e Charles Sheeler), Somente as horas (1926, Alberto Cavalcanti), Berlim, sinfonia de uma cidade (1927, Walter Ruttmann) e Douro, faina fluvial (1931, Manoel de Oliveira). O trecho 61 (1914?) compara o Cais do Sodré a um pagode chinês.

Augusto de Campos viu o mesmo número de letras nos nomes de autor e heterônimo, e compôs “pessoares (bernardo pessoa)”, em 2011, com uma frase do Livro: “aerea a hora era uma ara onde orar” (1916?). Está em Outro (2015), seção “extro: outraduções”, com trechos de prosa de outrem cortados em versos. Assim como há filmes de reapropriação de arquivo que reciclam imagens alheias (found footage), há duchampianos textos de apropriação.

Tristeza não tem fim, nem a estupidez nem o desassossego. O Livro expõe a danação a que todo ser humano está condenado. “Havia sempre uma relação systematizada entre o humanitarismo e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que soffreram do copo superfluo ou do pleonasmo da sêde” (1929?). Haja bagaceira — trago com uma bebida favorita de Pessoa, que mixou o imperador romano Septímio Severo e o poeta persa Omar Khayyam: “fui tudo, nada vale a pena” (1917?).

Não poderiam faltar referência e deferência à palavra-essência da língua portuguesa. Há no Livro dois hits do “lispoeta”: “Ah, não ha saudades mais dolorosas do que as das cousas que nunca fôram!” (1915?); “Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angustia de fuga do tempo e uma doença do mysterio da vida” (1934?). Por pensar em testamento, leio um eco de “Memória” (1803) de Hölderlin (“porém o que fica, fundam os poetas”, em tradução de André Vallias): “Fica de tudo um ou outro poeta” (1930?).

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.