Literatura,

A grande feira da existência

Publicada em 1923, obra de estreia de precioso autor romeno nos faz perambular pelos confins do Leste Europeu e do Oriente Médio

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Um velho turco, de barba branca, vem surgindo por entre os salgueiros junto às margens do Danúbio. Caminha devagar. Traz os braços em cruz encostados ao próprio peito e sua passada responde a uma sinfonia de três assobios — um longo e dois curtos — que ouviu tocar desde a orla do bosque próximo. É Ibrahim, pescador de lagostins e cultivador de melancias. Os assobios, esses, escorrem da boca de dois homens muito altos, bem maciços, em tudo semelhantes a dois carvalhos frondosos. Trazem turbantes nas cabeças raspadas, grandes olhos, a boca escondida dentro da barba, e cada um dos dois tem mãos peludas semelhantes a patas de urso. Vestem ghebás da cabeça aos pés, e por causa disso são negros como diabos. Pela nota do autor ficamos a saber que as ghebás são capas usadas pelos camponeses, assim como um pouco mais à frente na história descobrimos que existe uma expressão romena pela qual se designam as personalidades viris: cruce de voinic, ou, em português, “cruz de valente”. O autor é Panaït Istrati, e toda a mágica descrição anterior vem em seu livro Kyra Kyralina, publicado pela primeira vez em 1923, e lançado ano passado no Brasil.

Panaït Istrati nasceu em Braila, na Romênia, em 1884. Era filho de uma lavadeira local e de um contrabandista grego. E embora nunca tenha chegado a conhecer o pai, seus dados biográficos em tudo nos fazem pensar que terá puxado um pouco a ele. Muito cedo abandonou a escola, tendo preferido sempre o relento aos espaços fechados. Foi aprendiz de taberneiro, moço de recados, pasteleiro, escavador, pintor de letreiros e de paredes. Começou trabalhando em criança para ajudar a mãe, mas rapidamente se deslumbrou com o mundo e com a possibilidade da viagem. 

Depois de já ter iniciado sua carreira literária num jornal socialista romeno, com o artigo “Hotel Regina” em 1907, Istrati parte para o mundo. Vai até Bucareste, Istambul, Cairo, Nápoles e Paris. Na Suíça, fica internado num sanatório como tentativa de curar uma tuberculose, e é lá que conhece Josué Jéhouda, que se torna um bom amigo e seu professor de francês. Quando essa nova língua se abre para ele, começa a ler novos autores sem parar. Encanta-se com a literatura de Romain Rolland, a quem chega a escrever uma carta à qual não obtém resposta. Até que, em 1921, quando está a caminho de Nice, Panaït Istrati tenta o suicídio. Mas não sem antes encaminhar nova missiva para Rolland. Na carta — que descobriremos mais tarde, pela introdução do próprio Rolland a Kyra Kyralina — Istrati nunca perde o humor. Conta ao escritor francês sobre sua vida, sobre sua mãe, sobre suas aventuras e sobre seus ideais revolucionários. Romain Rolland fica deslumbrado. A tentativa de Istrati de acabar com a vida, cortando a garganta, falha. E é assim que se inicia uma troca de correspondência entre os dois, com Romain incitando o romeno a escrever mais, muito mais. 

Adrien frequenta tabernas duvidosas no Cairo, observa as moças turcas, nunca esquece o homem grego

Kyra Kyralina surge alguns anos depois deste incidente. Tendo lido os clássicos franceses, e sendo um viajante nato (dos territórios e da língua), Istrati põe em prática o idioma que poucos anos antes havia aprendido. Em francês, desenha um romance em três partes: 1. Stavro/ 2. Kyra Kyralina/ 3. Dragomir. Mas a primeira palavra do livro é outra, um outro nome: Adrien. 

Vento que atravessa as eras

Em Kyra Kyralina, Istrati apresenta-nos pela primeira vez a Adrien Zograffi, um alter ego seu que surgirá em muitas obras mais. Por vezes como personagem principal, outras vezes como observador, mas sempre como contador de histórias. Como o autor, Adrien pratica constantemente a vagabundagem saudável. Espanta-se com o mundo, mesmo quando o mundo lhe cai aos pés. Caminha muitas vezes distraído pela rua, pelas matas, ou junto às margens do Danúbio. Vê passar por si civilizações que descendem do Império Otomano, frequenta tabernas duvidosas no Cairo, observa as moças turcas e elas quase sempre dançam, nunca esquece o homem grego, escuta os conselhos do povo cigano. 

Em Kyra Kyralina, há histórias sendo contadas dentro de histórias o tempo todo. Adrien primeiro nos apresenta a sua mãe, depois ao amigo Mikhail, e logo a Stavro. Que mais tarde se revelará ser também Dragomir, irmão de Kyra Kyralina. Nesta espiral de personagens e de contos que em tudo fazem lembrar as histórias orientais que salvaram o pescoço de Sherazade — e que, como essas, não nos deixam dormir —, chega um momento em que ouvimos uma mulher perguntar a Stavro: “O senhor seria capaz de amar como um cigano?”

Stavro, pela pena de Istrati, revela-nos que nessa hora ele não saberia dizer se sua mão havia queimado ou congelado. E eu, que li Kyra Kyralina num lugar muito tranquilo, perto de casa e distante da cidade, confesso que deixei cair minhas duas mãos de espanto. Daí até ao final elas não pararam de cair. Subitamente a planície portuguesa virou oriental, e eu pude escutar um vento antigo sussurrar palavras sob a terra. Sem tempo nem geografia, Kyra Kyralina — quatro anos mais velha que seu irmão e dona de toda a atenção dele — dançava em minha sala. 

Nenhum dos meninos havia sequer chegado aos catorze anos, a mãe deles maquiava os dois olhos ainda vivos na frente de um espelho, retocava as sobrancelhas com a ponta carbonizada de um galho de manjericão, coloria lábios com um vermelho de kîrmitz. Os três trocavam beijos e renunciavam à dor. Comiam biscoitos, fumavam narguilé. Pela dança e pela carnavalização eles faziam frente à sombra que em dias excepcionais tomava de assalto a vida boa, e essa sombra estava eternamente mascarada no rosto do pai e do irmão dos meninos. Também eles eu pude ver entrar por minha sala, mas rapidamente os vi arder, sob o fogo fraterno de um homem vestindo ghebá. Esta, repare-se, é só mais uma cena de um livro que ficou cravado em mim e que tantas vezes me cravou à terra. 

Na maioria dos espaços brancos das páginas deste romance há anotações que fui fazendo a lápis, ora conversando com os personagens, ora fazendo-lhes perguntas, muitas vezes falando de minha tremura. Gargalhadas dei muitas também, já que as figuras centrais deste livro — tal como Istrati — quase nunca perdem o humor, embora estejam muitas vezes conscientes da desgraça que as rodeia. Apesar do desastre, elas não perdem a inocência que lhes permite ir renovando o espanto e o desejo. 

Kyra Kyralina é uma obra comovente. Está cheia de um vento selvagem que atravessa as eras, e os conselhos deixados em jeito de piscadela de olho pelos anciãos do livro são válidos até hoje. Embora as peripécias vão surgindo a toda a velocidade, há sempre alguém que tem tempo para parar um pouco e soltar uma dica fundamental. Que nada tem a ver com juízos morais nem de valor: antes denuncia a falha da violência, exalta os benefícios da atenção, canta um hino aos gestos bons e primitivos. 

Uma espiral de personagens e contos que fazem lembrar as histórias orientais que salvaram o pescoço de Sherazade

Eu vi o Danúbio pela primeira vez no começo deste século 21. Achei-o tão bonito. Mas talvez nessa hora eu ainda não estivesse pronta para observá-lo por inteiro. Nas últimas semanas, perto de casa e longe da cidade, eu pude ver como as margens desse rio inundam tudo. E fertilizam tudo, e dão esperança a tudo. Junto a ele nenhuma garganta pode ser degolada, todas as aventuras sempre serão possíveis, os cavalos levantam a poeira continuamente, e um homem velho e novo encosta os braços em cruz junto ao próprio peito. A seu lado, dois irmãos dançam ao som das canções otomanas, de tom francês, sob o olhar atento e pleno de sua mãe. E enquanto ela lava as brilhantes roupas na água doce do rio oriental, uma voz diz assim em surdina: “Porque a bondade de um só homem é mais potente do que a maldade de mil; o mal morre junto com aquele que o exerceu; o bem continua a raiar depois do desaparecimento do justo”.  

Quem escreveu esse texto

Matilde Campilho

Poeta e jornalista, é autora de Jóquei (Editora 34).
 

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.