Literatura japonesa,

Um milênio de mangá

Livro com mais de quatrocentas ilustrações e vasta pesquisa narra a linha do tempo das histórias em quadrinhos japonesas

27maio2022

Escrita no feminino pelos apreciadores de arte ocidentais do período Edo (1603-1868), a palavra “mangá” — a mangá, portanto — designava um conjunto de desenhos que servia de modelo para os alunos de um artista-mestre. O termo se popularizou após ser adotado por Katsushika Hokusai, principal pintor de estilo ukiyo-e da época e autor da célebre gravura “A grande onda de Kanagawa”. Composta dos iconogramas man (executado de maneira rápida e suave) e ga (desenho), a palavra transicionou de significado somente no final do século 19, assumindo primeiro a forma de caricatura humorística e, depois, das histórias em quadrinhos japonesas seriadas que conhecemos. O dicionário Kōjien da língua japonesa oferece as seguintes definições: desenho simples, humorístico e exagerado; caricatura ou sátira social; sequência de imagens que formam uma história: comics.

Para entender o mangá em sua completude, é preciso mergulhar na cultura japonesa: das caricaturas mais antigas, passando pelos emaki (rolos pintados) e pelas estampas de brocados até as edições de bolso de One Piece em papel-jornal barato. Sorte a dos leitores que toda a linha do tempo de uma das principais formas artísticas do Japão foi documentada por Brigitte Koyama-Richard, acadêmica francesa e professora de história da arte da Universidade de Tóquio, em Mil anos de mangá. O livro, que tem mais de quatrocentas imagens — a maioria inédita fora do Japão —, foi lançado na França em 2007 e agora ganha edição ampliada no Brasil, na Itália e na Espanha. “A nova versão apresenta muitos dos mangás mais recentes, como o famoso Demon Slayer, e mangás de sucesso que ainda não foram traduzidos, mas certamente serão em breve”, diz a autora em entrevista a esta reportagem.

Ela conta que se apaixonou pelo gênero por meio de seus filhos e dos alunos da universidade em 1990, principalmente após ter lido Astro Boy, de Osamu Tezuka. “Eu ensino história da arte e minhas aulas abrangem arte japonesa e ocidental. Foi através da história da arte que me interessei pelo mangá. Seu aspecto gráfico, mesmo que tenha influência dos quadrinhos americanos, permanece único.”.

Os mangás vêm seduzindo um público cada vez mais amplo em todo o mundo. No Japão, em obras literárias e pedagógicas, são parte da vida cotidiana, com audiências de todas as idades. No Brasil, firmaram-se em 1988, com a publicação de Lobo solitário, de Kazuo Koike e Goseki Kojima, e são encontrados hoje em qualquer banca de esquina. Como explicar tamanho sucesso? O que os mangás têm de tão diferente de todas as outras HQs?

O livro resgata o mangá de estereótipos que o limitam a objeto de atenção dos públicos infantil ou incel

“Os mangás são importantes porque são uma parte intrínseca da cultura japonesa”, diz Koyama-Richard. A edição brasileira de seu livro deixa explícita a conexão entre mangá e arte tradicional — algo que, no Brasil, talvez só tenhamos visto com tamanha profundidade e grafismo em Imageria (Veneta, 2015), de Rogério de Campos, que tem foco nos quadrinhos como um todo. Percebe-se que Mil anos de mangá, aliás, é mais voltado para quem se interessa pela história da arte japonesa em geral do que os “otakus de um mangá só”. Talvez por isso sejam frequentes comentários de leitores decepcionados a respeito do pouco que a autora se dedica às obras dos anos 70 em diante.

O livro é dividido em seis seções principais: “A Magia dos Rolos Pintados”, abrangendo do século 12 a meados do 19; “O Nascimento da Impressão Japonesa”, de 1850 a 1890; “O Amanhecer de um Novo Tipo de Caricatura”, de 1870 a 1890, com ênfase na influência da modernização e contato com o Ocidente; “A Ascensão das Tirinhas”, de 1900 a 1940; “Tezuka Osamu: O Deus do Mangá Moderno”; e “Mangá Moderno”. Há ainda entrevistas e perfis de grandes mangakas contemporâneos, além de uma linha do tempo e um rico glossário.

Legitimação

Parte das obras e dos artistas japoneses citados é facilmente reconhecível pelo público, mas saltam aos olhos também gravuras como “The Great Battle of the Vegetables and the Fish” (1858), de Utagawa Hirokage, que apresenta um exército de guerreiros armados com abóboras, unidos em batalha com soldados com cabeça de peixe e liderados por uma criatura com cabeça de polvo explodindo raios mortais de sua boca; e um desenho de Kawanabe Kyosai de 1870 que ilustra quinze ratos armados com lanças e arcos fazendo um gato de refém.

Com destaque para suas semelhanças com a arte ocidental, as obras japonesas são expostas em contraponto com gravuras como “Tapeçaria de Bayeux”, bordada em linho em 1070-80 por encomenda do bispo Odo de Bayeux, meio-irmão de Guilherme 2o da Normandia, para ilustrar a batalha de Hastings; ou “Dois dançarinos em repouso”, quadro bastante popular de Degas. O livro é um esforço impressionante de legitimação do mangá como forma artística, resgatando-o de estereótipos ocidentais que o categorizam como objeto de atenção exclusiva dos públicos infantil ou incel, com imagens carregadas de sexo e violência.

Alguns detalhes da edição podem incomodar os leitores mais exigentes,
como o fato de que frequentemente as imagens citadas se encontram algumas páginas adiante, ou que não há notas de rodapé, apenas asteriscos nos termos que se encontram destrinchados no glossário ao final do livro — algumas palavras, como mangaka (autor de mangá), surgem até cinco vezes numa página só, desnecessariamente sinalizadas. Nada que atrapalhe, no entanto, a riqueza da obra, que oferece um olhar fascinante sobre as raízes dos quadrinhos japoneses, tornando a leitura de seus expoentes contemporâneos ainda mais saborosa. “Espero que meu livro lhes permita descobrir novos aspectos da rica cultura do mangá e que os leitores queiram descobrir o belo país que é o Japão”, conclui a autora.

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Clara Rellstab

É jornalista, roteirista e repórter do Uol.