Literatura japonesa,

Planeta sombrio

‘Terráqueos’, novo romance de Sayaka Murata, traz tom mais pesado que o de ‘Querida konbini’ ao abordar abuso sexual

01mar2021

Os leitores de Querida konbini estavam esperando havia tempos pelo romance de Sayaka Murata. Mas talvez não esperassem a profundidade do abismo que a autora nos convida a saltar junto com ela. Fenômeno mundial de público e crítica, Querida konbini traz a história de Keiko, uma vendedora que cria uma espécie de ilha de Utopia particular na konbini em que trabalha, uma loja de conveniência banal nas ruas de Tóquio, um típico “não lugar”, por onde todos apenas passam. O livro é uma crítica sutil ao conformismo, mas também aponta para a possibilidade de nos encontrarmos no mundo, mesmo que seja numa diminuta loja de comida rápida e bugigangas. O desconcertante apego da protagonista a seu local de trabalho e a forma como trata os clientes levam à conclusão fatal: ela não é deste planeta.

Pois em Terráqueos, lançado agora pela Estação Liberdade, também com tradução de Rita Kohl, Sayaka Murata parece radicalizar essa percepção e volta a certos temas tratados em Querida konbini e que aqui ganham tons sombrios. O jogo de perspectivas narrativas já começa no título: o livro é sobre os terráqueos, e não sobre Natsuki Sasamoto, a narradora do livro, que se identifica como extraterrestre e desenvolve poderes mágicos. Visões, mascotes imaginários e sons fazem parte desses poderes, mas o maior deles é a lucidez com que narra sua história. O distanciamento e o estranhamento estão presentes desde a primeira página, utilizados como ferramenta crítica de investigação da família, das cidades, da sociedade e de seus tabus mais interditos. Desde pequena, a menina compreende tudo aquilo que nós, terráqueos, teimamos em ignorar e ao mesmo tempo a tudo obedecemos cegamente.

Puro gatilho

Terráqueos se filia a uma linhagem contemporânea de romances de testemunho sobre abuso sexual e estupro e a impossível digestão desses fatos ao longo dos anos — livros como Minha sombria Vanessa, de Kate Elizabeth Russell (Intrínseca), e os brasileiros Eu preferia ter perdido um olho, de Paloma Franca Amorim (Alameda), e o recém-publicado Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy (Todavia). Livros que não têm gatilhos: são puro gatilho, talvez de leitura insuportável para muitas mulheres. Para o leitor homem, são uma porta de entrada para as mais terríveis sensações e pensamentos que só as mulheres conhecem, uma dor cujo tamanho jamais poderemos calcular.

O abuso sofrido pela personagem a deixa “quebrada”. Impressiona a habilidade narrativa de Sayaka Murata e de sua tradutora Rita Kohl em cenas que ficam gravadas na memória. Partes do corpo de Natsuki como que morrem — ela perde o paladar e, em um dos ouvidos, a audição. “Desajeitada e feia”, tratada com rudeza pela mãe e como uma colega esquisita na escola, Natsuki não tem lugar. Os poucos espaços de liberdade que possuía, especialmente na casa de campo da família, na remota e rústica Nagano, são interditados à menina. Ela percebe que não pertence a este mundo, passando a buscar outros iguais a ela, dotados de visão extraterrestre. Já adulta, a narradora procura escapar aos planos do que chama de a Grande Fábrica. A cidade é a Fábrica de Gente: centenas de milhares de ninhos de pessoas se reproduzindo para em seguida começar a trabalhar, obedecendo à “voz do mundo”. Natsuki oscila entre se deixar “ser tratada como ferramenta por outras ferramentas” e buscar seus iguais.

Entre essas ferramentas, estão o útero e os testículos de todos os terráqueos, que devem ser postos à disposição da Grande Fábrica para permitir sua dócil reprodução. “A Fábrica vigiava silenciosamente meu útero.” Quebrada, Natsuki busca na internet um marido com quem possa firmar um contrato de casamento “limpo”, isto é, sem sexo, tema de um conto de Sayaka Murata que foi publicado pela revista Granta.

‘Terráqueos’, novo romance de Sayaka Murata, traz tom mais pesado que o de ‘Querida konbini’ ao abordar abuso sexual

Não tem dificuldade em encontrar um candidato, Tomoya, outro esquisitinho, que tomava banho com a mãe até os quinze anos. “Meu marido explicou que não é que ele não se interessasse por sexo, mas que, para ele, sexo não era algo para ser feito e sim para ser visto. Ele gostava de assistir, mas a ideia de tocar outra pessoa e trocar tamanha quantidade de fluidos corporais lhe dava arrepios. Outro problema que ele tinha era não gostar de trabalhar. Isso transparecia em sua postura profissional, e ele nunca durava muito tempo na mesma empresa.”

Dormindo em camas separadas, sob o rigor do contrato nupcial secreto, os dois se amparam mutuamente. Nasce algo como o amor, ainda que o amor seja “só uma droga feita pelo cérebro para os humanos se reproduzirem. Um tipo de anestesia. É uma ilusão para embelezar o horror dos comportamentos reprodutivos, diminuir o sofrimento e o asco da relação sexual”. “Que bom que eu vim para este planeta e me casei com você”, um se declara ao outro.

A repulsa ao sexo não vem apenas do abuso sofrido na infância, mas também de uma visão do absurdo e do utilitarismo do ato sexual. “Na Terra, as mulheres jovens têm de se apaixonar e fazer sexo, e quando não fazem isso, todos consideram que elas estão vivendo uma juventude ‘triste’, ‘sem graça’, ‘da qual vão se arrepender’.” O desprezo com que Natsuki e Tomoya enxergam os casais faz lembrar o personagem de Philip Roth para quem o casamento monogâmico é a mais bizarra das perversões sexuais.

Tambem não há moralismo. A busca é a da suspensão da moral, do desbravamento de todos os territórios proibidos. Nesse sentido, Terráqueos é um inventário de tabus de todos os tipos, prato cheio para antropólogos e psicanalistas. “Estou pensando em transar com meu avô”, diz Tomoya a certa altura. A passagem é uma daquelas que trazem um toque cômico, típico de Sayaka Murata, em meio ao terror do que está sendo contado.

Ávido por se transformar em “outra coisa” por meio da infração ao tabu do incesto, Tomoya ganha o apoio da esposa na empreitada, e também do primo dela, um outro extraterrestre, que, ao se juntar ao casal, parece fechar o triângulo de loucura perfeito que leva ao desenlace chocante. Abstenho-me de dar mais spoilers.

Pesado, Terráqueos é escrito com leveza; sombrio, tem narração luminosa e desprovida de hipocrisia; terrivelmente lúcido, é uma história de loucura extrema que nos faz a todo momento pensar o que estamos fazendo aqui, servindo à Grande Fábrica, sendo tratados como ferramentas por outras ferramentas.

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.