Literatura japonesa,

O sangue e a neve

Cartas revelam a intimidade e os contrastes entre o ganhador do Nobel Yasunari Kawabata o 'enfant terrible' Yukio Mishima

01jun2020

Os anos de 1945 a 1970 revelam imensas transformações no Japão: o caos do pós-guerra, a ocupação pelos Estados Unidos até 1952, o estabelecimento das Forças de Autodefesa (tendo sido proibida a manutenção de um exército propriamente dito) em 1954, o crescimento econômico e o ineditismo em sediar os Jogos Olímpicos em 1964 (quando se apresenta o trem de alta velocidade Shinkansen, grande inovação tecnológica), as atribulações e protestos contra a Guerra do Vietnã, a ocupação da Universidade de Tóquio por estudantes ativistas. Movimentos artísticos de vanguarda na visualidade e na cena dramática, novos hábitos ocidentalizados e importações a favor e contra valores antagônicos à tradição tornam o período complexo e variado e, no campo da literatura, tal brocado de diferentes coloraturas também se faz sentir.

Um recorte pessoal durante esses anos na vida de dois dos mais conhecidos escritores japoneses se vislumbra através da presente edição de suas cartas. Já traduzida para várias línguas, a correspondência ao longo de 25 anos entre Yasunari Kawabata (1899-1972) e Yukio Mishima (1925-70), organizada pelo escritor e crítico Shōichi Saeki (1922-2016), um dos editores das Obras completas de Mishima, tem um caráter inédito não só na raridade de publicações desse gênero no Japão como no sentido de revelar nas palavras trocadas certa intimidade no limite da possibilidade hierárquica e das distâncias de pensamento, estética e temperamento (tão diferentes quanto “o sangue e a neve”, como os personificou Donatella Natili, professora de literatura japonesa na UnB, no posfácio às correspondências).

Interessa-nos muito, em nossa época de pequenos egos e narrativas mínimas, perscrutar o cotidiano dos hoje grandes nomes do panteão literário. Nota-se como suas cartas sempre contêm amabilidades sociais, saudações familiares, agradecimentos por trocas periódicas de presentes, menções sazonais, augúrios à boa saúde. Percebe-se como os comentários sobre obras literárias recém-lançadas evoluem com o passar dos anos, com extrema sagacidade por parte de Mishima. Intui-se como são revelados ou ocultados sentimentos em relação a ocorrências externas — os bastidores da concessão do primeiro prêmio Nobel a um escritor oriental, em particular. 

Não espere, entretanto, longas cartas de discussões estéticas ou filosóficas, justificativas morais ou programas de atividades políticas (a explicitação dos feitos dos escritores em relação ao tempo da correspondência e seus bastidores emocionais está mais bem revelada na análise da professora Natili; o paralelo temporal ano a ano encontra-se em anexo de autoria do tradutor Garcia, ainda que não especificada na edição).

Em especial, acompanhamos Yukio Mishima, ainda sob seu nome familiar Kimitake Hiraoka, recebendo palavras amáveis do mestre Yasunari Kawabata, 26 anos mais velho, em relação a sua primeira publicação, de 1944 (Floresta em plena florescência): não pouco teria ele se alegrado ao receber um aval considerando-a “obra elevada”, que “prende o interesse”. 

A última carta de Mishima foi datada de 6 de julho de 1970, quatro meses e dezenove dias antes de cometer harakiri (ritual suicida japonês reservado à classe guerreira) em Ichigaya, quartel-general do leste das Forças de Autodefesa do Japão. Através desses poucos documentos trocados entre os escritores, suas obras e vidas preenchem as lacunas e nos fazem querer ler nas entrelinhas, por mais que aquilo que de fato existiu seja ciúme adjacente ou inveja ou desprezo.

Quando esteve no Brasil, em 1952, aos 27 anos, Mishima elogiou nos brasileiros (na verdade, nos nipo-brasileiros) o nível de descontração, simpatia, educação e conhecimento do Japão. Visitou São Paulo, Itu, Rio de Janeiro e foi hóspede na fazenda de Toshihiko Tarama (1929-2015, neto do imperador Meiji, imigrado em 1947), na periferia de Lins, onde se impressionou com uma natureza prenhe de estranhezas (tatus, jabuticabas, formigas, cupins): “A estadia na capital paulistana e sobretudo na fazenda dos Tarama em Lins iriam servir-lhe de material para a gênese de sua peça A toca de cupins”, aponta Darci Kusano, em Yukio Mishima: O homem de teatro e de cinema (Perspectiva, 2005). 

Também impulsionados pela estadia no Brasil, alguns contos e outras peças clamam por tradutores e editores e certamente resultariam em um volume significativo. Já notamos que as experiências vividas pelo escritor comparecem em seus escritos, desde sua primeira obra de fôlego, segundo o próprio, autobiográfica, Confissōes de uma máscara (Companhia das Letras, 2004).

Ciúme adjacente
O editor Saeki aponta em seu prefácio uma maledicência comumente referida por inúmeros críticos em relação a certo “ciúme adjacente” de Mishima por seu mestre, assim interpretada: “Quero fazer relembrar a todos como Yasunari Kawabata era alguém muito querido, uma existência imprescindível para Mishima”. Que narrativa criamos quando contrapomos Kawabata, primeiro japonês vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1968 (tendo sido candidato todos os anos desde 1961 e finalmente vencedor na edição contra W. H. Auden, André Malraux e Samuel Beckett) contra a figura controversa de Mishima, quatro vezes indicado (1958, 1960, 1961, 1962)?

Se lembrarmos que também na lista de indicação japonesa se encontraram Jun’ichirō Tanizaki, Shūsaku Endo, Abe Kōbō e Kenzaburō Ōe (vencedor em 1994), mesmo assim não será minorada a imagem bombástica de Mishima como a de um defensor ferrenho da extrema direita, um misógino homossexual, um narciso fisiculturista, um ressentido prolixo em oposição à figura diáfana, sensível, melancólica, bela e eivada de aura depressiva que foi Kawabata.

Segundo alguns críticos apontam, o preferido na corrida pelo Nobel na época era Jun’ichirō Tanizaki — em especial pelas obras As irmãs Makioka (1943-48) e Alguns preferem urtigas (1929) —, porém seu falecimento aos 79 anos, em 1965, deixou o campo livre para outros japoneses. Daí a polêmica com Mishima: em 27 de maio de 1961, Kawabata pediu a ele que lhe escrevesse uma carta de recomendação à Academia sueca, no que é prontamente atendido (com resposta já no dia 30), em pouco sutil retribuição ao apoio por uma causa judicial pendente. Prêmio outorgado a outrem, em carta de 17 de abril de 1962, Kawabata revela um dissimulado desinteresse: “É curiosa a ineficiência do comitê de indicação para o prêmio Nobel […]. De todo modo, imagino que o prêmio será adiado para a sua geração”.

O protagonismo na cena literária mundial desenvolvido pelo Japão desde sua recuperação econômica passou pelo caminho da tradução para as línguas ocidentais, tendo sido referido na correspondência dos dois escritores, em tons mistos de admiração, dúvida ou complacência: da Inglaterra, Ivan Morris, dos Estados Unidos, Meredith Weatherby, Donald Keene, Edward Seidensticker e do editor Harold Strauss. Kawabata, ao comentar a tradução de sua obra Mil tsurus, nota que muitos ocidentais achavam que a tradutora Sachiko Yashiro fosse homem. 

Da mesma forma, o autor dos anexos anônimos das “Biografias cronológicas dos autores” afirma, no tópico correspondente ao ano 1963, ser Eiko Hosoe uma fotógrafa (o sufixo –ko é um ideograma comum para nomes femininos): Eikō Hosoe (ou Eikoh como o próprio costumava se grafar) foi dos mais importantes ensaístas fotógrafos, e sua série com Mishima intitulada Bara-kei (Provocação pelas rosas), de notável vigor duradouro e um testamento estético de ambos, foi exposta em São Paulo, no Sesc Consolação, em 2014. Não só para os estudantes de literatura japonesa, mas para o público geral, a adoção mais rígida das regras de romanização poderia ter sido considerada para evitar ambiguidades.

Mas, mesquinharias e maldizeres que cercam celebridades descartadas, as obras falam: amplíssimos, complexos, investigativos, os escritos de Mishima em muito se contrapõem ao universo estético minimalista de Kawabata. O período do pós-guerra no Japão e sua profunda cisão cultural, para além do contraponto “crisântemo” (Kawabata) com sua cultura refinada, obscura e algo depressiva e seu culto à poesia de flores, pássaros e amores, ao Belo Japão, e “espada” (Mishima) com sua retórica samurai nostálgica do Hagakure e seu culto ao corpo e tomada de ações políticas, para utilizar conceitos célebres em relação à cultura japonesa como lida pela antropóloga americana Ruth Benedict (1887-1948), produziu incontáveis gamas de artistas e escritores, em confronto às importações via Estados Unidos e seus traumas de perda. O trabalho de fotógrafos como Eikoh Hosoe, para quem Mishima posou em sessões célebres por seis meses, ou Daidō Moriyama, bem como o teatro underground de Shūji Terayama, além de uma imensa produção cinematográfica, bem o atesta.

Talvez surpreenda os leitores brasileiros nas cartas de Mishima perceber o papel que o teatro exercia entre suas atividades, não só na posição de dramaturgo, mas também na de ator. O prolífico tradutor e especialista em literatura japonesa Donald Keene traduziu em 1959, de sua autoria, Cinco peças de nó moderno, mas, como o próprio Mishima afirma, tal tipo de publicação carece de leitores em qualquer país — “Venderam setenta (!) cópias” —, enquanto Confissōes de uma máscara já atingia os 5 mil exemplares. De fato, peças de Mishima foram traduzidas para o português por Darci Kusano em sua tese de livre-docência na Escola de Comunicações e Artes, mas ainda aguardam editora. Lembre-se aqui da montagem de Madame de Sade, adaptação dirigida por Roberto Lage com a atriz Bárbara Paz, em 2005 — escrita em 1965, foi montada em Londres (2009) e filmada por Ingmar Bergman (1992).

Morte encenada
Ao assistirmos a encenações do ator Mishima, em particular no curta Yūkoku (disponível no YouTube como Patriotismo ou Rito de amor e de morte), intuímos seu caminho de atualizar a ficção do faz de conta na realidade da ação: a morte encenada se realiza. Ainda Kimitake Hiraoka, em 3 de março de 1946, aos 21 anos, já escrevia: “Pois não é verdade que a arte nasce da experiência? […] Na própria empatia, que é um produto da cópia essencial difícil de ser evitado, já hão de existir elementos que ultrapassam o conceito de cópia”.

Mishima acaba por realizar uma cópia em sua vida daquilo que faz acontecer a seus “personagens”; arte e vida se tornam um, política e ação se concretizam quando sua última grande obra (a Tetralogia) é terminada. A questão budista da reencarnação faz de Mishima um samurai (conforme sua antiga procedência) idealizado, atualizado, um substituto de guerreiro dos tempos heroicos do bushidō, que, no entanto, contraditoriamente venera o imperador em substituição  a um inexistente xogum, símbolo máximo em oposição a um tempo capitalista de subserviência ao vencedor.

Por seu lado, Kawabata — que proferira no discurso de aceitação do prêmio Nobel: “Por mais que se possa odiar o mundo, suicídio não é uma forma de iluminação. Porquanto virtuoso, o suicida está distante do reino da verdadeira sabedoria” —, dois anos depois do espetacular harakiri de Mishima, busca um modo de “se matar de forma discreta e solitária, no pequeno apartamento em que trabalhava em Zushi, a poucos quilômetros de sua casa”, como registra Natili, que aponta pesadelos ligados ao fantasma do autor e à descoberta do mal de Parkinson. 

Mais relacionado à estética e à poética da corte de Heian, com seus nobres poetas e monges retirados do mundo no período dos samurais, Kawabata se contrapõe ao suicídio ritual, este sim, típico da cultura guerreira. Dançarinas mirins em estradas vicinais, pequenas vilas perdidas em meio a nevascas, tingimentos de gélidos tecidos tradicionais e seus fazeres milenares, mestres do jogo de estratégia go, especialistas de dança moderna ocidental, praticantes da cerimônia do chá, gueixas de províncias, moças virgens adormecidas e aromas e arranjos florais preenchem o minucioso e sensorialista universo dos entreatos de amor tipicamente nipônico de Kawabata. 

Poderíamos associar seus escritos às figuras bonitas de Utamaro, à pintura nihonga de Shōen Uemura (1875-1949), à culinária sofisticada servida em cerâmica autoral. Ou, em especial, às obras de delicado teor ornamental de plantas, flores e pássaros, e sofisticação de objetos do cotidiano de Tawaraya Sōtatsu (c. 1570-1640) e dos irmãos Ogata Kōrin (1658-1716) e Kenzan (1663-1743), artistas já referidos desde a primeira carta enviada a Mishima, em referência a preparativos da evacuação de patrimônio devido à guerra.

Yasunari Kawabata e Yukio Mishima são autores de leitura imprescindível, sempre. Em forma epistolar, mais próximos dos leitores.

A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Madalena Hashimoto Cordaro

Escreveu A erótica japonesa na pintura & na escritura dos séculos 17 a 19 (Edusp).