Literatura japonesa,

Foi dado o recado

Em obra que aborda o nazismo, Osamu Tezuka, o Pai do Mangá, faz um alerta sobre o fascismo histórico

01dez2020

Uma das maiores premiações do quadrinho japonês é o Prêmio Cultural Osamu Tezuka. Em Takarazuka, onde passou a infância, há um museu de três andares dedicado a ele. Este ano, quando a empresa Kioxia quis desenvolver o primeiro mangá gerado por inteligência artificial, alimentou-a com obras de Osamu Tezuka para criar um “mangá estilo Tezuka”. Daria para enumerar vários exemplos da importância de Tezuka para a cultura japonesa — o que seria desnecessário aos consumidores de mangá. Para eles, Tezuka é nada menos que o deus, ou, no mínimo, o Pai do Mangá.

Com produção furiosa desde o pósguerra, Tezuka (1928-89) criou personagens e histórias clássicas, como Astro Boy, Kimba, o leão branco e A princesa e o cavaleiro. Também foi um dos impulsionadores da animação japonesa a partir dos anos 1960. Quando se fala que os personagens japoneses são desenhados com olhos gigantes, é uma referência ao estilo de Tezuka e de seus sucessores — ainda que ele dissesse que sua inspiração para os olhões tivesse vindo da Disney.

A parcela mais famosa da obra de Tezuka é voltada para o público infantojuvenil. Mas há um grande número de quadrinhos que ele produziu, sobretudo a partir do fim dos anos 1960, dentro do movimento chamado gekigá, ou “imagens dramáticas”. São quadrinhos voltados para o público adulto, com personagens e traços um tanto mais sofisticados, tramas e discussões morais mais elaboradas. Alguns chegaram ao Brasil: Buda (Conrad, 2005), Ayako (Veneta, 2018) e este Recado a Adolf — que já havia sido lançado aqui apenas com o título Adolf, em 2006, pela Conrad.

À la Tintim

O Adolf do título é, sim, Adolf Hitler, o famoso Führer. Mas também é o nome de outros dois garotos no Japão: um judeu, Adolf Kamil, e outro de mãe japonesa e pai alemão, Adolf Kaufmann. Os três viram personagens na HQ, que se passa durante a ascensão do regime nazista nos anos 1930 e o início da Segunda Guerra Mundial — embora, no primeiro volume, não sejam os protagonistas.

Tezuka quer fazer uma preleção sobre os tempos de Hitler e da guerra — sem esconder o envolvimento do seu país em barbáries como a da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-45). Talvez para deixar um recado para as novas gerações a respeito de como o fascismo se organiza e consegue dominar um país, levando-o ao desastre, ele resolveu embalar sua lição de história numa aventura à la Tintim.

A trama começa nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. O jovem correspondente japonês Sohei Toge está cobrindo o evento quando recebe um telefonema do irmão mais novo, estudante em Berlim. Ele tem uma informação e “pode ser que [ela] abale as bases do nazismo”. Toge encontra, então, o irmão assassinado, cujo corpo desaparece após ser levado pela polícia. A existência do irmão é apagada, e o jornalista começa a investigar a conspiração por trás dessa morte. A partir daí se instala uma longa trama de espionagem, relações familiares, ufanismos, anticomunismo e, como diria um locutor de trailers, “um homem em busca da verdade”.

O mistério que o irmão de Toge guardava são provas de que Hitler tinha um avô judeu. Os documentos, concordam os personagens, destruiriam a campanha do ditador em defesa de uma “raça superior” e do antissemitismo. Aqui Tezuka se baseia numa anedota do advogado de Hitler, Hans Frank, que aventou a ascendência judaica do chefe em um livro de memórias. Historiadores ainda discutem se é verídica essa provocação, que envolveria uma possível relação forçada da avó paterna de Hitler, na fazenda em que ela trabalhava, com o filho do patrão judeu. O pai de Hitler, assim, seria filho ilegítimo. Mas, até hoje, não há como comprovar essa informação.

Não será fácil levar esses documentos sobre o Führer para o mundo. Uma sucessão de circunstâncias impede o jornalista de divulgá-los. A Gestapo faz de tudo para tomar a pasta; os governos dos Estados Unidos, da União Soviética e de outros países também vão atrás dela; até um ladrãozinho pé de chinelo fica na cola de Toge por saber que ele carrega algo valioso. 

É Tintim: há alguma coisa que todos querem desde o início. Mas a trama  vai se enrolando, complicando o cumprimento dessa meta. No caso de Tintim, essas complicações eram criadas para encher um álbum de modo que soasse plausível. Já em Recado a Adolf, as mais de seiscentas páginas do primeiro volume percorrem quatro anos da trama, que ainda chegará até o fim da guerra (e além) no segundo volume — outras seiscentas  páginas. É como um seriado de tv que dura mais temporadas do que devia — dá para sacar que o produtor pode encerrar a história  a qualquer momento, mas ele a prolonga enquanto tem público. E ainda não tratamos direito dos três Adolfs — o ditador e os dois garotos —, que vão ter que esperar o segundo volume para ganhar protagonismo. 

Embora pensada para o público adulto, Adolf tem didática juvenil tanto no desenvolvimento quanto na contextualização histórica. Para padrões ocidentais — e mesmo para os de outros autores do gekigá, como Yoshihiro Tatsumi —, Tezuka curiosamente se ateve ao traço dos mangás infantis: caricatural, com expressões exageradas e cheio de teatralidade. As pernas de Toge se esticam de forma cartunesca quando ele corre. Em sua boca surgem dentes afiados quando se irrita. Os vilões, unidimensionais, têm olhos vidrados e carrancas.

A própria ascensão do nazismo é explicada como em uma aula de colégio. A trama pausa para explicar marcos no governo de Hitler, das Olimpíadas — “não passaram de propaganda direcionada ao mundo, exibindo uma grandiosidade glamourosa do governo nazista” — à invasão da Polônia. Às vezes, a explicação se integra à trama: Toge assiste a um discurso de Hitler e comenta a retórica goebbelsiana, na fala e na composição visual, que o ditador usava.

Uma linha do tempo explica os principais acontecimentos, ano a ano. O volume também traz um glossário da tradutora, Drik Sada, esmiuçando ainda mais questões da história japonesa. A nova tradução brasileira gerou uma polêmica nas redes sociais: leitores reproduziram a página em que um personagem diz “Com meu histórico de atleta, não é uma doencinha qualquer que vai me derrubar”. Os leitores reconheceram a alusão a Jair Bolsonaro, que em março disse não se preocupar em ser contaminado pela Covid-19, “uma gripezinha”, em razão de seu “histórico de atleta”.Na HQ, a fala vem de um simpatizante do nazismo que fica de cama depois de perseguir um opositor — tem a ver com os documentos que condenam Hitler — durante um temporal. 

A polêmica se agravou porque, na edição anterior, a tradução dessa fala era outra, enquanto a tradutora é a mesma. A mais recente, intencionalmente ou não, equipara um simpatizante do nazismo a um simpatizante de vários fascismos. Numa obra de alerta sobre o fascismo histórico, o recado está mais do que dado.

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Érico Assis

Tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).