Literatura japonesa,

Esplendores do vazio

Romance de 1968 sobre rapaz que oferece sua própria vida em um anúncio de jornal traz os grandes temas da literatura de Mishima

01fev2021 | Edição #42

“A ideia de suicídio lhe ocorrera de repente, da mesma forma como teria pensado em fazer um piquenique”, diz o narrador do romance Vida à venda, ainda nas primeiras páginas. O motivo da decisão de Hanio Yamada, protagonista dessa história, não é possível dizer com certeza, mas talvez essa ausência de propósito fosse a melhor razão. Na farmácia, Hanio consegue sedativos, mas depois adia o ato. Assiste a três filmes no cinema, flerta num bar que costumava frequentar.

Ao contar para uma garota sobre sua intenção de se matar, só consegue provocar risos. Revoltado, deixa o bar, joga pachinko (jogo de azar popular no Japão) e engole as pílulas, embarcando num trem logo em seguida. A morte não se cumpre: ele é socorrido e levado para o serviço médico. “Malograda a tentativa de suicídio, Hanio via abrir-se diante de si um mundo maravilhosamente livre, mas um tanto vazio.” É a percepção do vazio que indica o caminho do ato seguinte: publicar, em um jornal de terceira categoria, um anúncio colocando a própria vida à venda: “Vendo minha vida. Use-a como quiser. Homem de 27 anos. Garanto sigilo. Tranquilidade absoluta”.

O anúncio é o propulsor da trama desse estranho e bem-humorado romance de Yukio Mishima. Vida à venda foi publicado originalmente na Playboy japonesa de forma seriada, entre maio e outubro de 1968. O próprio Mishima não tinha nenhum apreço por essas histórias, sempre fazendo distinção entre os “romances comerciais”, escritos por encomenda e com o intuito de entreter os leitores, e os romances que lhe renderam a fama de grande nome da literatura mundial. Mishima chegou a afirmar que os seus dezessete romances publicados em revistas ao longo de sua breve carreira eram “obras menores”. De fato, sim, Vida à venda é uma obra menor se comparada às que deram a Mishima seu lugar no panteão de grandes escritores do século 20, como Confissões de uma máscara, O pavilhão dourado e a tetralogia Mar da fertilidade. Mas traz os grandes temas da sua literatura: a dualidade entre vida e morte, o erotismo, a violência e a crítica à ocidentalização do Japão pós-Guerra.

Estranho e bem-humorado, o romance foi publicado na ‘Playboy’ japonesa entre maio e outubro de 1968

A disponibilidade inusual da vida do personagem Hanio atrai interessados. Ele passa a negociá-la conforme o bel-prazer do comprador, incluindo a possibilidade de sua própria morte, o que refletiria o seu suposto desapego. O primeiro a negociar é um homem velho atraído pelo desejo de se vingar da jovem esposa, Ruriko, que o trai com um mafioso. Para que o plano tenha êxito, Hanio deverá seduzi-la e ser morto com ela. Para tanto, recebe uma proposta de 50 mil ienes do pretenso comprador. A partir daí, uma sucessão de fatos, como nas rocambolescas tramas policiais de Agatha Christie e Georges Simenon, permitirá que ele sobreviva às sucessivas vendas e passe a acumular dinheiro, além de novos desafios de morte, sempre encarados como uma grande aventura que, paradoxalmente, passa a dar sentido à sua vida. 

É assim quando um jovem o procura para salvar a sua mãe, uma mulher rica mergulhada em grave depressão e anemia. Aos poucos, descobrimos que ela se alimenta do sangue dos amantes, o que Hanio aceita de maneira subserviente. Na cama, durante um jogo sexual, ele vê a mulher dominá-lo e feri-lo no braço: “De imediato, a dor se fez outra, uma dor de ferimento espremido. Os lábios da senhora sugavam. Houve um longo período de inação. Hanio ouviu um ruído delicado, de algo descendo pela garganta da mulher. Quando descobriu que se tratava do seu sangue, estremeceu”. 

O tom bizarro e psicodélico domina a narrativa, e é interessante perceber como os dias vazios do protagonista se movimentam com a ideia de descartabilidade da vida e iminência da morte. Isso porque a missão de Hanio se aproxima cada vez mais do fim, intensamente afetado pelas sensações do perigo, extraindo desses momentos o intenso prazer que não tinha antes.

Personalidade enigmática

Mishima é das personalidades literárias mais controversas do século 20. No ensaio Mishima ou a visão do vazio, Marguerite Yourcenar especula sobre a personalidade enigmática do autor e o considera um representante autêntico do Japão “violentamente ocidentalizado” do pós-Guerra, mas também “marcado por suas características imutáveis”, as tradições. Vida e arte, espírito e corpo não encontram espaço para dualidades maniqueístas. E para compreender sua literatura é preciso refletir sobre sua própria vida. Como diz Yourcenar, já não é possível fruir Hamlet sem saber quem é Shakeaspeare num tempo dominado pela “curiosidade grosseira pela anedota biográfica”. 

No caso de Mishima, a sombra e o reflexo dos personagens são por vezes de si mesmo, “o homem real viveu e morreu dentro desse segredo impenetrável que é o de toda a vida”, diz a autora. O nacionalismo extremado dos seus últimos anos foi uma resposta simplista de Mishima às rápidas transformações desencadeadas pela aproximação com o Ocidente, a qual se refletiu no apagamento de tradições.

Vida à venda foi publicado dois anos antes de Mishima praticar o seppuku, o suicídio ritual. O romance faz uma análise sombria e burlesca de temas como a vida e a morte. Hanio Yamada é um personagem complexo, atraído pela possibilidade da morte — que não deixa de ser a metáfora da morte de seu Japão ancestral —, mas, ao mesmo tempo, não abdica dos prazeres da vida, contrariando o que poderia ser uma visão niilista do tema.  

A história alcançou sucesso após duas edições, a original e a de 1998. Na última década, foi traduzida para o inglês, além de ter sido adaptada para uma série da tv japonesa. Mesmo que não tenha o brilho de suas obras mais aclamadas, o romance traz a marca da literatura de Yukio Mishima: uma investigação sem concessões da natureza humana perante a decadência de um mundo que se transforma em grande velocidade.

Nota do editor
O Centro de Valorização da Vida (cvv) oferece atendimento de prevenção ao suicídio pelo telefone 188. O serviço funciona 24 horas por dia, sete dias por semana.
Este texto foi feito com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Itamar Vieira Junior

Recebeu o Prêmio LeYa pelo romance Torto arado (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.