História, Literatura infantojuvenil,

Versão da editora

Diário editado pela própria Anne Frank ilumina sua habilidade na escrita e seu olhar crítico diante de um original promissor

01out2021 | Edição #50

Algum tempo atrás, antes de pais de uma escola particular questionarem a pertinência da leitura de O diário de Anne Frank por crianças por causa da curiosidade sexual típica da idade de Anne, outra discussão mais prosaica mobilizou opiniões no Twitter. Bastou uma pessoa avaliá-lo como “chato” para outras tantas o defenderem, não elogiando seus atributos literários, mas argumentando que a veracidade do relato e os horrores que a garota viveu tornam absurda qualquer avaliação negativa da obra. “Se soubessem que tudo o que ela conta é verdade, não falariam uma coisa dessas”, diziam os defensores do diário.

Fato é que dificilmente se atribui à qualidade do texto o sucesso ininterrupto de O diário de Anne Frank. Os registros que Anne deixou são elogiados pela sinceridade que a escrita íntima garante. Quando adotada como leitura obrigatória em escolas, a recepção parece estar atrelada a um senso de compaixão quase compulsório e pouco elaborado. Ocupa um espaço menor uma reflexão sobre os elementos textuais que fomentam a identificação entre jovens de diferentes locais e épocas.

O lançamento de Querida Kitty representa uma mudança nessa situação. Ao observarmos as entradas do diário editadas pela própria Anne, ainda no esconderijo da família, deparamos com a manifestação do desejo da autora de, futuramente, transformar aquele exercício cotidiano em obra literária. Ainda escondida, ela reviu parte do que havia escrito. A versão enxugada do diário ilumina a habilidade de uma jovem autora, ainda em formação, ciente do olhar crítico necessário diante de um original promissor.

Ao revisar seu diário, Anne excluiu trechos em que relata sua curiosidade em relação à sexualidade, o que inclui sua menstruação

Quanto Querida Kitty reflete a satisfação de Anne Frank com sua produção é impossível dizer. Afinal, ela nem sequer chegou a revisar todo o conteúdo do diário que começou a escrever aos treze anos. O que vemos é a autora construindo uma voz narrativa própria e habilidosa enquanto desenvolve o enredo em pequenos capítulos, como ao narrar os preparativos da família antes de partir rumo à Casa dos Fundos (destaque para a originalidade da tradução no uso de Casa dos Fundos em vez do recorrente Anexo Secreto) e o abandono afobado da vida que tivera até então.

Outro trecho precioso é a recepção ao dentista Pfeffer, admitido posteriormente no esconderijo. Anne entrega ao novo morador uma brochura, na qual se refere à Casa dos Fundos como um hotel de férias, mencionando, entre as qualidades da hospedagem, o fato de ser acessível de bonde. Nem mesmo a proibição de judeus utilizarem o transporte público escapa ao seu humor afiado. Há, aliás, diversas tiradas sarcásticas que confirmam a desenvoltura de Anne Frank como contadora de histórias, em especial os atritos com a sra. Van Pels. Outro acerto da tradução é chamá-la apenas de “madame”, o que dá força às observações mordazes de Anne.

A maior diferença entre Querida Kitty e O diário de Anne Frank (a versão mais conhecida mistura o diário à reescrita da autora) está na narração dos conflitos entre Anne e sua mãe, bastante reduzidos após a revisão. Entretanto, não deixam de aparecer os desentendimentos e uma conclusão madura e chocante: Anne, ao analisar seus sentimentos, diz não amar a progenitora, o que pode soar brutal, mas não deixa de ser um registro profundo das dimensões da saída da infância.

A sensação de não ser compreendida é repetida diversas vezes por Anne, atordoada com as críticas constantes a seu temperamento explosivo, ao mesmo tempo que se mostra incapaz de agir de modo diferente, mantendo sua posição assertiva. Talvez sejam os momentos em que ela mais se mostra como uma adolescente comum e atemporal.

Muitos leitores também podem se identificar com as questões relativas à privacidade na vida comum da Casa dos Fundos. Comentários sobre os odores desagradáveis, o uso coletivo do banheiro e a satisfação dos poucos momentos a sós são curiosos, por vezes divertidos, e conseguem reproduzir a vida em condições difíceis, com um humor que não chega a ser escatológico. À medida que o tempo passa, a narrativa fica mais melancólica, e é interessante notar que os hábitos alimentares consistem em um marcador das dificuldades crescentes, com a progressiva perda de variedade e quantidade dos alimentos.

Sexualidade

Ao revisar seu diário, Anne excluiu trechos em que relata seu interesse em relação à sexualidade, o que inclui sua menstruação, a curiosidade com o corpo de uma amiga e com o nascimento de bebês via parto normal. Anne Frank em sua versão editora talvez os achasse inadequados, enquanto a autora não. Sobreviveram aos cortes uma discussão curiosa com Peter, o filho dos Van Pels, sobre a genitália dos gatos, e observações de Anne a respeito dos garotos que se interessaram por ela e como o sentimento não era recíproco. Se, para muitas pessoas, garotas de décadas atrás são vistas como recatadas, aqui vemos uma menina que sabe o que quer (e, principalmente, o que não quer), mesmo que misturando sua determinação a um certo romantismo.

Desde que foi publicado pela primeira vez, em 1947, O diário de Anne Frank já teve diferentes versões e adaptações para o cinema e o teatro. A polêmica mais recente, que tachou a obra de indecente, se voltou contra uma adaptação para os quadrinhos lançada por aqui pela editora Record em 2017 — por sinal, os autores Ari Folman e David Polonsky, criadores da animação Valsa com Bashir (2008), também transformaram a hq em um filme animado. Essas produções, em especial quando chanceladas pela Fundação Anne Frank, são fundamentadas em pesquisas e nos manuscritos deixados pela autora, explorando a vocação de cada mídia, forma de expressão e recorte. Se O diário de Anne Frank é o desabrochar de uma jovem durante a Segunda Guerra Mundial, Querida Kitty é o seu florescimento como escritora.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Thais Lancman

Escritora e crítica literária, publicou Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.