Literatura infantojuvenil,

Saudade sem volta

Obra do ‘livreiro do Alemão’ desmascara como o extermínio promovido pelo Estado racista atravessa a infância

18set2020

Aos olhos de uma criança o mundo é infinito e cabe no quintal de casa. Às vezes esse mundo é invadido por policiais militares, camburões e balas que atravessam as paredes do seu lar e da sua escola. Morro dos ventos, de Otávio Júnior, resgata breves cenas do cotidiano para desmascarar o quanto o extermínio promovido pelo Estado racista brasileiro atravessa nossas vidas, desde a infância até a juventude, passando pela memória de ausências que continuam presentes, o que contraria a ideia de transformar essas mortes em meros números e estatísticas.

O livro abre com uma dedicatória a Vanessa Francisco Sales, mãe da menina Ágatha Félix, morta aos oito anos, em setembro de 2019, pela Polícia Militar no Complexo do Alemão. A história da menina, infelizmente, acaba sendo comum no cotidiano das favelas do Rio: mesmo sendo uma tragédia, é resultado da política de segurança do governo fluminense.

De autoria de Otávio Júnior — escritor negro que fala das vivências faveladas a partir do quintal de casa, quintal do céu como no samba de Jorge Aragão e Wilson Moreira —, Morro dos ventos cria, através das palavras, possibilidades de se imaginar uma forma simplesmente mais humana de contar suas experiências, sem deixar de ser crítico e instigar a imaginação da leitora e do leitor.

Escritor premiado, Otávio fez sua trajetória a partir do Complexo do Alemão, onde ainda reside. Ele também criou o projeto Ler é 10 — Leia Favela, com o objetivo de aproximar a literatura dos moradores e formar leitores, na esteira de iniciativas como a Festa Literária das Periferias. Ele também inaugurou, em 2011, o primeiro espaço de leitura do Complexo da Penha e do Alemão.

Escola

As ilustrações de Letícia Moreno abusam da liberdade do traço livre sem deixar de afetar diretamente os leitores pequenos: as folhas, as pipas, as bolas rolando e as cores estão em sintonia com o movimento do vento, tornando onipresentes na memória as crianças mortas. Nascida em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, é uma artista que prefere ilustrar pessoas negras, com a intenção de provocar essa identificação junto a esse grupo de leitores.

A saudade e a falta permeiam Morro dos ventos, e a dor provocada pela tristeza só é atenuada pela esperança que as próprias crianças inspiram. O balanço vazio na árvore simboliza alguém que devia estar lá, mas não está; o vento faz lembrar Ágatha; os muitos assentos vazios na sala de aula também recordam outras crianças que foram embora por causa de mortes violentas realizadas por autoridades policiais. João Pedro foi uma dessas crianças que, no meio de uma brincadeira, perderam a vida, não por acidente, mas por conta do projeto de morte brasileiro. No Salgueiro ou no Alemão, Morro dos ventos está em todo lugar.

Como podem as escolas seguir de pé mesmo cravadas de balas perdidas, tendo seus sonhos apagados e suas cadeiras vazias, em meio a vozes que somem na gritaria do recreio? Os gritos das crianças que não estão mais ali ecoam saudade sem volta.

A mesma escola que às vezes garante a alimentação de muitos é a que protege no meio do tiroteio, servindo de escudo. Nas vozes dos amigos ecoam as vozes dos que se foram, e estas são levadas pelo vento, enquanto pipas voam pedindo paz. É o que acontece quando sementes do futuro se encontram. O vento não leva embora a esperança.

 Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

É editor do PerifaConnection, integrante do Voz da Baixada e atualmente escreve um ensaio biográfico sobre Mãe Beata de Yemanjá.