As Cidades e As Coisas, Literatura infantojuvenil,

Prédios em fuga

Trama com edifícios que decidem abandonar o espaço urbano ilustra de forma lúdica a importância de uma retomada verde

01out2021

Contabilizamos uma série de perdas ao longo da vida. Guarda-chuvas esquecidos nos bancos de pontos de ônibus. Óculos que são reencontrados em seguida, realinhando novamente o mundo à nossa volta. As perdas também se contabilizam para além dos objetos. Nos últimos anos, a marca da perda grava nossa memória e nosso cotidiano. Perdemos muitas pessoas, direitos e um tanto do ânimo.

O dia em que meu prédio deu no pé, de Estevão Azevedo, tematiza outro tipo de perda. No campo das coisas palpáveis, costumamos pensar que é mais fácil perder aquilo que é pequeno e leve e é menos provável que objetos grandes e pesados sejam esquecidos. O registro é o da visibilidade e da habilidade de criar raízes: o muito visível costuma não se esconder, o arraigado permanece. Mas, no livro de Azevedo, os prédios são o objeto da perda.

Não se trata de uma erosão silenciosa, muito comum na experiência de todos e todas que vivem em cidades. Passamos diariamente por ruas repletas de edifícios até que um dia surge um vazio ou um tapume no lugar onde morava um prédio. Dificilmente conseguimos lembrar o que preenchia aquela lacuna. Como podemos ser tão desatentos; como podemos ver e não registrar, apesar das infinitas repetições por aquele caminho?


Ilustração de Rômolo D’Hipólito (Divulgação)
 

Como o título já indica, os prédios não são alvos da destruição rápida ou lenta da ação humana. Criam pernas e fogem. Dão no pé. “Ver um prédio sair andando sem nem olhar para trás, você consegue imaginar?” A pergunta vem do narrador, um avô que escreve uma carta a sua neta.

O primeiro caso é o de um predinho que começa a chacoalhar. Solta as vigas do chão, fazendo a terra tremer. Mas o desprendimento é lento o suficiente para que todos os moradores possam descer a tempo de evitar maiores tragédias. Outros prédios começam a seguir o mesmo caminho, partem sem nem dizer adeus. No início, a fuga dos edifícios causa algum estranhamento, mas não a indignação necessária para se tornar coletiva. “Ninguém ligou tanto, não. Rapidinho surgiu outra coisa, triste de verdade, que atraiu mais atenção.”

Mas então a fuga ganha escala: “Só que aí aconteceu de novo, de novo e de novo. Num bairro, noutro e noutro. E não só na minha cidade. Para todo lado”. A saída em massa dos prédios começa a dar o que falar quando uma mansão e prédios de nome enjoado se unem aos fujões. Quando os bairros ricos também foram impactados, muitos passaram a entender que o problema transcendia os casos individuais.

Os prédios foram se alojar em países vizinhos, abandonando o português para adotar o espanhol. Uma das páginas do livro é repleta de ilustrações de placas e sinalizações que ganham novas letras para completar a adaptação: “livros” vira “libros”; “carinho”, “caminho” e “lasanha” ganham ñ; “vinhos” se torna “vinos”. Não há troca possível diante da placa “saudades”, que gera apenas dúvidas por parte dos operários da construção que viabilizam a transição.

Um dia o movimento de fuga atinge diretamente o narrador da história. A marca é da inevitabilidade. Aconteceria com todos, era só questão de tempo. Também não valia a pena pedir abrigo ou erguer outras casas. Era uma tentativa vã, que só acrescentava mais edifícios  à fuga. Fogem o Museu Nacional, a Igreja do Bonfim, a “manada de elefantes brancos” de prédios de Brasília. A calamidade é instaurada. Uma guerra intensa é travada por aqueles que ficam e não têm onde se abrigar. Um novo modo de vida começa a despontar: “Quem não se adaptou, penou, quem se adaptou, temeu”.

O país começa a ser reconstruído a partir da retomada da natureza. “Sem as fábricas, as águas dos rios e dos lagos deixaram de ser turvas. A comida passou a ser de caça, de pesca, de horta. Para o medo e para a saudade, os cantos. Para a noite e para o frio, as fogueiras. […] Os postes apagados nos devolveram as estrelas.”


Ilustração de Rômolo D’Hipólito (Divulgação)
 

Descaso

O livro pode ser lido em várias chaves. Prédios que fogem diante do completo descaso pelo patrimônio. Na trama, o Museu Nacional não morre em chamas, mas é protagonista do seu desaparecimento. O autor chega inclusive a sugerir que talvez tenha sido por egoísmo, transportando o abandono para o plano da ação. A lápide com o ano da morte (2018) deixa claro o diálogo direto com os desmontes atuais e serve de ponto de apoio para debater essas questões com os pequenos e pequenas. Além disso, a questão da moradia é central. As pessoas que perdem a própria casa não são visíveis até que os mais ricos sejam atingidos. Mesmo que algo do plano do insólito aconteça — prédios marchando em levante —, os menos visíveis são sempre os mesmos no espaço urbano.

Por fim, a perda é transformada em esperança e em projeto. Não é uma utopia simples: é marcada por violência e guerra. Mas há a promessa de que o mato domine o asfalto. E a carta endereçada à neta aposta que as crianças sejam as protagonistas, que “modelam no barro úmido os prédios de uma pequenina civilização”. A cidade esburacada dá lugar a uma transformação que passa por uma relação intensa com a natureza, podendo trazer à tona diversas discussões atuais sobre a necessidade urgente de uma retomada verde em todos os âmbitos da vida, inclusive nas cidades.

Com texto e ilustrações deliciosos, o livro trata das perdas dos nossos dias no Brasil, sem subestimar a capacidade das crianças de entender a gravidade dos problemas e escrever novos caminhos.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).