Literatura infantojuvenil,

Inventar a amizade

Premiada escritora argentina mostra a relação entre uma menina e um senhor recluso em meio à troca de livros

01set2020

É com os próprios olhos ardendo pelo sol dos pampas que o leitor acompanha a menina Clara atravessar uma aldeia algures na Argentina, salpicada por casas baixas, alpendres de palha e alguns cavalos. Ela precisa entregar a um cliente as roupas que a mãe lavou no tanque do quintal. O senhor, recluso na casa mais distante da vila, espreita a menina pela janela. Um dia, debaixo do tapete da soleira, ao lado das moedas para a menina, aparece um livro. Ali começa uma amizade: a cada viagem, ele lhe emprestará um novo livro. 

Escrito pela premiadíssima argentina Maria Teresa Andruetto (vencedora do Hans Christian Andersen em 2012, o mais prestigiado prêmio da literatura infantojuvenil), Clara e o homem na janela é um ir e vir do sol a pino à sombra de cortinas espessas. O livro trata do percurso silencioso que cada um faz durante a leitura; mas também daquele que nos é exigido para inventar a amizade: dirigir-se ao outro. A força do deslocamento está na cor dos sapatos de Clara, vermelhos, um dos raros objetos a destacar-se na paisagem.
Contemplamos cada página do livro com o cuidado de quem segura uma fotografia antiga. Em seu tom terroso, colorindo a lápis e aquarela de sépia, ocre, marrom, verde-musgo, a obra evoca o velho álbum de família. Não é escolha aleatória. Lê-se na epígrafe: “Esta é a história de minha mãe e de seu amigo Juan”. 

A obra reivindica e amplia, na própria forma, a frase de Borges: “O livro é uma extensão da memória e da imaginação”. Com a superposição de traços que o vento embaralha, a ilustradora Martina Trach simula o modus operandi da nossa relação com a memória e a leitura. Pernas, barras de vestido, paisagem, cesto, cortinas se atravessam enquanto Clara lê. 

A colagem e a gravura expandem o universo da biblioteca para outras páginas, integrando os motivos florais das cortinas e das capas de livros, dos carimbos de palavras e das manchas de tinta. São fragmentos cujos sentidos apreendemos pelas beiras e que perfuram o tempo cronológico. 

Contrastes

Clara entra na casa de Juan, volteando a cabeça para descobrir o entorno, como qualquer criança curiosa diante de uma casa alheia. Em uma dessas visitas, o homem lhe confidencia: antigamente, costumava passear com o rapaz que vinha cuidar do seu jardim. Naquela época não tinha medo: amava-o. Mas não teve coragem de ir embora com ele. 

Juan tem aqueles ombros arqueados de quem envelheceu rápido demais, sem que a fisionomia o acompanhasse. Clara o escuta, atenta.

O livro trata do percurso silencioso exigido pela leitura e para fazer amigos: dirigir-se ao outro

Pouco deve saber dos interditos sociais ao amor pelo mesmo sexo, mas sabe ouvir. Os pés dela balançam no ar; os dele, bem assentes, cansaram-se. Não foram capazes de correr. “O que quer dizer coragem?”, a menina pergunta. A escritora Andruetto, tão silenciosa, tem seu único deslize ao querer responder. A frase é longa e sem surpresa. 

O exímio uso das formas e cores mostra um jogo entre polos. À planície dos pampas opõe-se a verticalidade de estantes e tomos de livros; à vastidão do dia, se lhe devolve a vida confinada no acúmulo de uma biblioteca; e mesmo aos pés ligeiros da menina que corre, carregando fatias de luz consigo, corresponde um homem sentado, por vezes apenas contorno ou croqui sem rosto. 

Claro-escuro, dentro-fora, medo-coragem, movimento-paralisia, infância-velhice. A obra convida a que um lado aprenda do outro, sem pretender estancá-los. Pedaços de um mundo penetram e estampam o alheio. Não há cores puras nem fundos ilesos: essa é a melhor definição visual da amizade. 

Juan, segurando um livro de capa amarela, seu naco de sol, precisa cruzar a fronteira do claustro. Mas a distância da menina de sapatos vermelhos é imensa. Demoramos na cena, a poeira a se levantar sem conseguir domar a amplitude do vazio. Qual é o tamanho dessa distância? Nos pampas, o horizonte é um deserto. Quantos quilômetros há entre a infância e um homem com medo? 
Clara-claridade-clarão. A amizade jamais nos deixa incólumes. É assim que, ao modo de posfácio, melancólico e sutil, lá está ele, Juan, pela primeira vez a olhar para cima, para um pássaro em voo, talvez saído da árvore solitária ao pé de sua casa. Ou de alguma página de sua biblioteca.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Marana Borges

Prepara o lançamento de seu romance Mobiliário para uma fuga em março pela Dublinense.