Literatura infantojuvenil,

Convivendo com a diferença

Em viagem pelo rio Amazonas, personagens de livro de autores indígenas discutem como se transformar no contato com o outro

30set2023 | Edição #74

Em Cada remada uma história, é como se os autores Tiago Hakiy, Daniel Munduruku, Cristino Wapichana e Roni Wasiry estivessem eles mesmos em busca das sementes do arco-íris, como os quatro jovens protagonistas indígenas, de diferentes etnias, cada um carregando seus saberes e tradições em uma viagem a bordo de uma canoa pelo rio Amazonas. Na busca por essas sementes, seguem as indicações de um velho viajante; ali, onde as sementes estão, seria possível encontrar uma “alegria iluminada”.

Durante o trajeto, os jovens conversam sobre como é ser indígena e contam uns aos outros histórias de seus respectivos povos. Mas falam também sobre como é ser indígena em um mundo “branco e no século 21” — o que se perde, o que se ganha, o que se tenta manter, o que se luta para recuperar. De certa forma, talvez a pergunta principal da obra seja: como viver a alteridade, permeável ao outro (porque não há como viver de outra forma), mas sem perder a si mesmo?

A pergunta principal é: como viver a alteridade, ser permeável ao outro, mas sem perder a si mesmo?

Quatro personagens, quatro autores, quatro histórias, quatro pontos cardeais, bússola de estrelas que nos guia rio abaixo. É uma história-aventura de todos e de nenhum. Onde começa e onde termina o outro? O que fazer com esse encontro? Nas palavras de um dos personagens, uma resposta: 

Apenas estou dizendo que nós podemos ser o que os brancos são e saber o que eles sabem sem deixar de ser o que somos e saber o que sabemos. Podemos ter as coisas que não são da nossa cultura, sem deixarmos de ter a nossa própria cultura. 

É um modo de convivência, de coabitação do mundo. As palavras fluem e viram muitas outras.

Mas um livro como este exige abordar não só o lado de que se escreve, mas também aquele que se lê. O encontro com as culturas indígenas, assim como com qualquer tipo de alteridade, se quisermos um encontro verdadeiro, exige uma mudança de posição, talvez um passo para o lado, talvez um salto, uma linha de fuga. E que esse encontro nos transforme, nesse constante devir. E assim como os jovens do livro, poderíamos nos perguntar: como vivenciar a diferença, permeáveis a esse encontro, nos transformando e sem destruir o outro? Nós que tendemos a enxergar apenas aquilo que já sabemos, ou imaginamos saber. Como não trilhar, mais uma vez, o mesmo caminho? O livro nos convida justamente a isso, a um deslocamento, uma mudança de rota. Rio abaixo.

Novas formas de ler

Assim, para a leitura dessa obra, sugiro nos despir de todo tipo de ideia preconcebida sobre o que deve ou não ser a literatura, e inclusive sobre gêneros como literatura adulta, infantil ou juvenil. E, especialmente, sugiro que inventemos novas formas de ler. Neste caso, por que não ler como quem busca a estrutura num prédio ou numa casa? Aquilo que sustenta a leitura. Seu lugar no mundo. Tracemos uma linha norte-sul. Uma literatura integrada à vida e às demandas da vida, e de uma história pregressa.

O desejo que guia os quatro jovens é a busca pelas sementes de arco-íris, esse lugar de sonho, de pura alegria, sendo que, para nós, leitores, o próprio livro nos serve como guia, é o próprio caminho que diz “venha, por aqui!”. E, talvez, a gente se dê conta de que não sabíamos o que carregávamos. Como um desencontro. Talvez um tempo circular. E então, somente então, ali, onde a luz e a chuva confluem, para onde tudo flui, talvez surjam algumas sementes e sejamos capazes de fazer delas um território comum.

Pois é essa a maior força desse livro, sua capacidade de, no meio da floresta, abrir um clarão. E desse clarão, do outro lado do espelho, a nossa própria selvageria: 

Tenho um avô que é muito sábio. Certa vez ele disse que as pessoas da cidade são muito estranhas. Elas nos chamam de selvagens, mas são elas que deixam crianças passarem fome e gente sem casa pra morar. Algumas pessoas são muito ricas e possuem coisas em excesso enquanto outras não têm nada.

Nesse sentido, Cada remada uma história nos apresenta uma literatura que se desdobra de modo novo, ainda que sempre tenha estado ali. A literatura ancestral. Que ela nos permita reescrever o mundo. Um mundo mais leve (como um pássaro), mais vivo, com mais coragem. E que sejamos capazes de ouvir, da boca de uma das personagens, feito flecha em direção ao centro das coisas: “A ilusão é tão verdadeira como é a verdade uma ilusão”.

Quem escreveu esse texto

Carola Saavedra

Escritora e tradutora brasileira nascida no Chile, autora de Com armas sonolentas: Um romance de formação (2018) O manto da noite (2022), publicados pela Companhia das Letras.

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.