Literatura infantojuvenil,

Cabelos com vida própria

Livro que inspirou animação ganhadora do Oscar cativa ao tratar da relação entre pai e filha entre um penteado e outro

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Premiado como melhor curta de animação no Oscar 2020, Hair Love (2019) emocionou os espectadores com a história de Zuri e de Stephen. A menina, que pede ao pai um penteado diferente, apresenta a ele o desafio de fazê-la se sentir bonita para celebrar um momento importante. O livro no qual o filme é baseado, Amor de cabelo, é tão cativante quanto a animação e uma boa leitura para repensar figuras paternas tradicionais e relações familiares.

A narrativa delicada, que envolve tentativas e erros, pentes e acessórios, em meio às frustrações do adulto e da criança, até que os dois se entendam, é apresentada no livro do ponto de vista de Zuri. A sua perspectiva complementa a que está no filme por revelar mais detalhes da relação da protagonista com seu cabelo e com o pai.

Livros infantis que abordam os cabelos e a beleza de crianças negras, como Meu crespo é de rainha, de bell hooks, criam imagens positivas e dão margem a conversas sobre a autoestima. No entanto, Amor de cabelo surpreende por colocar o pai como uma figura importante na percepção que Zuri tem de si mesma. Se muitas vezes a expectativa do cuidado com as meninas recai sobre as mães, assim como o modelo a ser seguido na construção de uma autoimagem saudável, a diferença fica clara logo no começo da leitura. Quando a narradora menciona seus “cabelos com vida própria”, ela destaca na sequência: “Papai diz que são lindos. Fico toda orgulhosa. Adoro que meu cabelo seja tão eu!”.

A versatilidade dos cabelos de Zuri, que podem ser trançados ao estilo nagô, presos em puffs, usados soltos num black power e finalizados com diversos acabamentos, dialoga com as várias formas como ela se vê: uma princesa, uma super-heroína e, por fim, alguém com algo mágico na cabeça. Zuri não é apenas uma menina bonita, ela também se entende capaz de ser muitas coisas, e seus penteados fazem parte de quem ela é, permitindo expressar um pouco da sua personalidade a cada dia. 

Um pai presente

Zuri também é atenta. Ela percebe que o pai, apesar do cansaço e de trabalhar muito, inclusive em tarefas domésticas, consegue arrumar tempo para brincarem juntos. Ela tenta poupar seu pai e se arrumar sozinha. No entanto, ainda que seja esperta o suficiente para procurar tutoriais em vídeos do YouTube, suas habilidades infantis não são suficientes para alcançar suas expectativas do penteado perfeito. 

Zuri não é apenas uma menina bonita, ela também se entende capaz de ser muitas coisas, e seus penteados fazem parte de quem ela é

Stephen é um pai carinhoso, que, como a maioria dos adultos sobrecarregados, tenta resolver a situação de forma prática e rápida, até perceber a importância da situação para sua filha. Em uma entrevista ao The New York Times, Matthew A. Cherry, autor do livro, roteirista e um dos diretores da animação, comentou que, além de estimular a representatividade de famílias negras amorosas, ele queria trazer a imagem de um pai negro que participa da criação da filha. “Pais negros têm as piores reputações em termos de estereótipos — nós somos os que abandonam, os que não estão por perto. As pessoas que conheço estão extremamente envolvidas na vida de seus filhos.” 

As ilustrações de Vashti Harrison mostram esse pai jovem, tatuado, usando longos dreadlocks. Uma representação jovem e contemporânea, que deixa claro como a percepção que Zuri tem de sua beleza e da importância de seus cabelos faz parte de uma dinâmica familiar. A atenção de Stephen ao seu visual não apenas influencia na confiança da filha, que reconhece cabelos naturais num adulto próximo, mas permite que ele compreenda o desejo de Zuri de estar bonita num dia considerado importante. 

O desfecho do livro, assim como o do filme, mostra que a preocupação de Zuri não se trata apenas de uma vaidade infantil. Estar bonita para rever sua mãe é um gesto que pode ser lido a partir da alegria do reencontro e do desejo de agradar, de uma tentativa de demonstrar que ela e o pai cuidaram bem um do outro enquanto estavam só os dois.  

Além das muitas tentativas de arrumar fios volumosos, Amor de cabelo traz diversas demonstrações de carinho e cuidado. Um pai penteia sua filha, uma menina tenta deixar seu pai descansar um pouco mais, o adulto tem paciência para que a criança fique feliz com o que vê no espelho, com o intuito de fazer sua mãe sorrir depois de um período no hospital. Poderia ser uma bela história sobre cabelos se não fosse sobre as coisas que somos capazes de fazer pelas pessoas que amamos.

Esse texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Stephanie Borges

Jornalista, ganhou o prêmio Cepe de poesia com Talvez precisemos de um nome pra isso (no prelo).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.