Literatura infantojuvenil,

Brincadeiras que são um perigo

Três lançamentos problematizam comportamentos vistos como femininos e masculinos nas crianças

01out2020 | Edição #38 out.2020

Uma sociedade que diz acreditar que o gênero é um desdobramento do genital com que se nasce e que, paradoxalmente, defende que é o comportamento do indivíduo que define o gênero da pessoa. Essas características contraditórias sintetizam o nosso tempo, e dois livros infantis traduzidos para o português revelam claramente essa faceta: em Viva as unhas coloridas!, dos espanhóis Alicia Acosta e Luis Amavisca, o personagem João é chamado de menina na escola por gostar de pintar as unhas, ainda que não se identifique dessa forma; e em Eu sou uma menina!, da irlandesa Yasmeen Ismail, a protagonista sem nome passa todo o livro tendo que reafirmar seu gênero por insistirem em chamá-la no masculino.

Nesse segundo livro não fica claro se a história é a de uma criança que, tendo sido criada para ser uma menina, está sendo confundida com um menino por causa do seu comportamento — ela é bagunceira, corajosa e arteira, atributos culturalmente associados ao gênero masculino — ou se estamos diante de uma criança trans (a autora se inspirou na irmã, chamada de menino na infância por ter cabelo curto, mas o livro permite outras leituras). Eis, aliás, um dos méritos de Eu sou uma menina!, um texto que borra a fronteira entre os gêneros, problematizando as tentativas de generificar o corpo e o comportamento das crianças, e afirma o direito de elas expressarem o que pensam sobre si mesmas.

Em nossa sociedade, se a criança que é identificada como alguém que nasce com pênis demonstrar o desejo de ser tratada no feminino, ela será ridicularizada e lembrada de que seu gênero só poderá ser o masculino. Agora, caso a criança com pênis, que se pensa como menino, revelar interesse por práticas entendidas como femininas — como João em Viva as unhas coloridas! —, poderá ser chamada no feminino, como uma forma de humilhação.

Ser e parecer

O motivo é machucar e também servir para que essas crianças se deem conta de que estão ultrapassando as fronteiras da feminilidade e da masculinidade consideradas corretas e saudáveis. As demais crianças entenderão essa prática como um aviso do destino que as espera se não se comportarem como reza a cartilha. Ensino cotidiano do medo, delega às próprias crianças a tarefa ingrata de fiscalizar a performance de gênero umas das outras. Esmeramo-nos em ensinar às crianças que elas devem se esforçar para parecer ser de um determinado gênero (como se o gênero fosse um destino incontornável imposto pela biologia e algo que precisa ser permanentemente ostentado pelo indivíduo), fazendo com que sintam medo de se imaginar de gêneros diferentes.

Nossa sociedade trata a violência como brincadeira e vê como perigoso o que borra os limites de gênero

Não basta ser, é preciso parecer, como descobre João em Viva as unhas coloridas!. Mas o problema não para aí, pois a sociedade força as crianças a desenvolverem uma aversão diante da ideia de se imaginar de um gênero diferente. Esse medo é alimentado cotidianamente ao se naturalizar a violência como brincadeira — os colegas de João o hostilizam por ele gostar de pintar as unhas (“menina”, aqui, funciona como um xingamento, ensinando meninos a não quererem ter nada em comum com meninas e, junto, promovendo a desvalorização de tudo que for reputado feminino). Ao mesmo tempo, a sociedade trata outros tipos de brincadeira como particularmente perigosos, em especial os que confundem os limites entre os gêneros.

Viva as unhas coloridas! aborda em cheio esse segundo ponto, assim como Princesa Kevin, do francês Michël Escoffier. Nessa obra, temos a história de um menino que descobre que, no faz de conta das fantasias infantis, é permitido imaginar qualquer coisa, menos uma personagem de outro gênero. Percebem o contrassenso? A criança pode ser um perigoso pirata, um valente caubói, um assustador jacaré, um dragão cuspidor de fogo, e nada disso será um problema. Mas, se o menino ousar se fantasiar de princesa, todos os alertas serão ligados: querer vestir-se de princesa, ou seja, ser capaz de projetar-se numa personagem feminina já sugere que estamos diante de uma criança “diferente”.

Talvez seja mesmo uma criança diferente, mas não há nada de errado nisso. Pelo contrário. Possivelmente ela ainda não internalizou a hierarquia de gênero que nossa sociedade machista produz. Uma criança que, criada para ser menino, não acredita que ver-se no feminino é humilhante. Torço para que livros assim ajudem a forjar uma nova geração de pais, mães e educadores(as) que saiba ouvir o que Joões, Kevins e a protagonista de Eu sou uma menina! (de quem não sabemos o nome, mas sabemos que é uma menina) estão nos dizendo, uma geração que saiba aprender com o que essas crianças têm a nos ensinar.

 Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Amara Moira

Crítica literária, escreveu E se eu fosse puta (Hoo).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.