Literatura infantojuvenil,

A face divina do oceano

Com belo projeto gráfico, livro faz releitura de texto sagrado da cultura yorubá

01mar2020 | Edição #31 mar.2020

Algumas histórias nos fazem navegar em discussões profundas da existência humana de forma sutil, simples e divertida. Essa é a principal experiência ao ler O filho querido de Olokun, de Rogério Athayde, publicado pela Pallas. O escritor tem mais de vinte anos de carreira como antropólogo, é mestre em literaturas africanas de língua portuguesa e graduado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de ter uma vivência pessoal na cultura e religião yorubá.

Na obra, um pescador lamenta todos os dias sua pobreza, até que recebe um chamado divino do oceano, mudando toda a sua vida. A história é uma releitura do Odu Ifá Osa Kuleja (também chamado de Osa Ogunda), um texto sagrado, conectado com o próprio oráculo de Orunmilá, a testemunha de toda a criação do universo nas crenças de matriz africana. Nas próprias palavras de Athayde: “Essa fábula do Ifá sobre a insatisfação humana vem sendo contada e recontada de diversas formas, há mais tempo do que conseguimos mensurar. Olokun é o orixá que está associado à ancestralidade, ao mundo dos mortos: tudo começa e acaba no mar”.

Salta aos olhos a linguagem poética, cuja estética se mantém sofisticada o suficiente para embelezar o texto e ser acessível às crianças. As ilustrações e o projeto gráfico da obra são um espetáculo por si. O livro tem o fundo todo escuro e, à medida que a narrativa avança, a função de cada traço e cor empregados pela artista plástica Clara Zúñiga vai sendo revelada. Essa é a segunda parceria de Athayde e Zúñiga, que trabalharam em Exu e o mentiroso: uma história yorubá recontada por Rogério Athayde (Pallas, 2012).

Jornada do herói

Ainda no começo da obra, o pescador aceita o convite de uma Tartaruga-Gigante para visitar o fundo do mar e conhecer seu pai, Olokun. Nesse ponto, entendi toda a construção da obra, em que arte e texto se completam perfeitamente: enquanto o personagem mergulha, os desenhos explodem em cores que representam a riqueza da vida marinha. Isso também ajuda na demarcação de um ponto crucial para a narrativa, entre o mundo comum e o mundo mágico, seguindo a famosa jornada do herói enunciada por Joseph Campbell.

Como em toda narrativa de fantasia clássica, o mundo comum é aquele que o herói conhece muito bem, parecendo-lhe enfadonho, mas mantendo sua segurança emocional. O mundo do pescador é uma “casinhola feita com restos de navios naufragados, pedaços de madeira encerados de maresia que o oceano havia se negado a engolir”. A escala quase monocromática escolhida por Zúñiga nos faz crer que não existia muito para ver nesse lugar. O pescador, sem nome, se conecta a cada um de nós, quando reclamamos do nosso mundo habitual, até sermos arrebatados por algo fora do comum, que surge como uma porta rumo ao desconhecido.

Ali no fundo do mar, ao lado de Olokun, tudo parece mágico, e o pescador ganha um novo entendimento sobre o mundo. O orixá Olokun, que também é representado por uma sereia, se mostra como um Tritão para seu filho querido e explica: “Eu sou o mar, você vê a mim na forma como me apresento, forma humana para sua compreensão”. A pérola mais valiosa da narrativa aparece quando o protagonista, ao ter saciado todos os seus desejos, percebe a incompletude de sua vida: ele havia abandonado a filha e a esposa. A leitura, então, parte para um desfecho surpreendente, pois o homem descobre como sua insatisfação o aprisionou e o tempo roubou a raiz de sua felicidade. Encerrando o sentido da jornada do herói, ele retorna para o mundo comum, mas não é capaz de continuar a viver como antes, não há mais casinhola de pedaços de madeira. Sua aventura para o fundo do oceano foi, na verdade, uma grande viagem pelo tempo. Perdido e solitário, o pescador encontra no oceano o último refúgio de sua alma.

O livro revela a verdadeira face do mar pela cosmovisão yorubá: “A escuridão lhe assegura todas as riquezas jamais criadas e todas as tristezas já vividas”, em nota poética do sacerdote de Ifá Rodrigo Ifáyodê Sinoti. A carga dramática que fecha o livro é atravessada pelo entendimento gracioso de que o pescador seguiu seu caminho nas graças de seu pai Olokun.

Estes textos foram realizados com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Ale Santos

É autor de Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro (Panda Books).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.