Literatura estrangeira,

Subversão e totalitarismo

Autora sueca antecipou em quase uma década o mundo distópico criado por George Orwell em “1984”

01dez2019

Karin Boye é um ícone na Suécia. No Brasil, seu nome é familiar para entusiastas da cultura nórdica, mas permanece absolutamente desconhecido do grande público. Sua robusta coleção de poemas segue inédita no país e apenas um de seus romances foi publicado, em 1974, em tiragem modesta pela cea Editora, com tradução de Janer Cristaldo. E é justamente esse livro, Kallocaína, que ganha nova edição pela Carambaia, em tradução de Fernanda Sarmatz Åkesson.

Nascida em 1900, Boye captou e disseminou as ideias mais libertárias do seu tempo, como o antifascismo, a psicanálise, o movimento feminista e de liberação sexual. Ensaísta, poeta e romancista, foi homossexual numa época em que isso ainda era crime em seu país natal e encerrou a própria vida em 1941, juntando-se a Virginia Woolf e Sylvia Plath no mórbido clube das escritoras suicidas.

Esse final trágico pairou como névoa sobre a sua imagem, que por muito tempo foi a de uma autora atormentada cuja obra se alicerçou num conflito indissolúvel com a própria homossexualidade. Com o passar dos anos, contudo, a “fumaça” se dissipou, revelando uma intelectual vibrante e afiada, um dos principais nomes do modernismo sueco, que esteve no centro da vanguarda literária e política. Boye era ousada e propôs, em 1932, a criação de uma nova língua, sem amarras gramaticais ou sintáticas, que permitisse a expressão profunda da alma do poeta. Acreditava que essa poesia de vanguarda seria amplamente compreensível em grande escala ao se basear nas descobertas de Freud sobre a extensão do inconsciente.

Seu gosto surrealista não se restringia à poesia. Já na juventude pintou aquarelas de duendes, sereias e outros seres sobrenaturais. Na prosa, mostrou interesse pelo universo fantástico que viria a ser visitado por escritoras como Ursula K. Le Guin e Margaret Atwood. E o maior expoente dessa aventura é Kallocaína, romance de 1940 que rendeu a Boye reconhecimento internacional.

O livro sueco é primo-irmão dos romances distópicos Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley; 1984 (1949), de George Orwell; e Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury. Infelizmente, o romance de Boye não ganhou o mesmo espaço dos títulos assinados por colegas do sexo masculino. Apesar de anteceder em quase uma década a visão distópica que Orwell viria a explorar em 1984, Kallocaína ficou recluso a nichos literários.

Kallocaína retrata um sistema totalitário caracterizado por profundo controle e vigilância. Os ambientes públicos e privados são monitorados pela polícia com olhos e ouvidos eletrônicos, que ganhariam em Orwell o formato da teletela. Cada domicílio tem uma empregada cujo trabalho é essencialmente informar as autoridades sobre comportamentos desviantes e cada indivíduo é, acima de tudo, um suspeito em potencial. Boye, que visitou a União Soviética e chegou a morar alguns anos em Berlim nos anos 1930, foi claramente impactada pelo que observou no totalitarismo soviético e no controle social que caracterizou o período de ascensão de Hitler na Alemanha.

Lógica alucinógena

O mundo de Kallocaína está em guerra constante e nele vigora um sistema de completa compartimentalização dos espaços, da sociedade, das famílias. Os cidadãos são impedidos de visitar outras áreas do território, de modo que carecem de uma visão geral da sociedade em que vivem. Além disso, são impossibilitados de construir qualquer laço profundo com os demais: amor, intimidade e solidariedade são conceitos desconhecidos.

Nesse contexto vive o protagonista Leo Kall, um cientista que inventa uma espécie de soro da verdade, que estimula os pacientes a revelarem seus segredos mais íntimos. É Kall quem nos apresenta seu mundo distópico da forma que pode: com poucos fatos e muitas elucubrações sobre os outros setores da sociedade e os demais personagens. Não existe apresentação didática das bases que sustentam o tecido social do mundo de Kallocaína: tudo é compreendido indiretamente, pela forma de pensar de Kall, que confronta a lógica do leitor.

Na mente dele reina um bom senso alucinógeno em que é perfeitamente razoável que crianças sejam enviadas aos sete anos de idade para campos de educação especial onde serão doutrinadas como bons soldados. É também normal que não se converse com um desconhecido sem uma testemunha que possa garantir que nenhum crime foi cometido. E, naturalmente, um momento de silêncio compartilhado com o colega de laboratório causa extremo desconforto: numa rotina em que cada minuto do dia é alocado para uma atividade específica, é embaraçoso não ter o que fazer na presença do outro.

Cada reflexão de Kall é como um soluço que coloca em xeque a nossa lógica vigente. O maior mérito de Boye talvez seja justamente essa subversão, de forma oblíqua, dos fundamentos ideológicos de nossa vida em sociedade. Algo similar ocorre em cada sessão em que as cobaias experimentam a droga que dá título ao livro. A kallocaína tem o efeito de privar os pacientes de qualquer avaliação prévia e seus pensamentos e sentimentos jorram de suas bocas num fluxo contínuo e totalmente livre. E é assim que conhecemos a lógica dos “rebeldes”.

O mais interessante de Kallocaína talvez seja o conflito vivido por Kall, que não parece passar por crítica ou questionamento da estrutura: ele é antes uma espécie de confusão mental sobre a própria lógica interna do sistema, que parece pregar valores contraditórios. É uma espécie de rascunho do conceito de duplipensar, que Orwell desenvolveria em 1984.

Por essas e outras razões, Kallocaína merece estar na prateleira dos maiores romances distópicos da literatura. Assim como todo clássico, é um romance que, apesar de seus quase oitenta anos, dialoga muitíssimo bem com a alta vigilância tecnológica de nosso tempo e com o retorno de sistemas autoritários pelo mundo.

Espera-se que se beneficie do renovado interesse contemporâneo pelo gênero e que sirva também para abrir as portas do país para Karin Boye, uma autora que merece mais atenção do mercado editorial brasileiro. 

Quem escreveu esse texto

Helen Beltrame-Linné

Graduada em direito pela USP e em cinema pela Sorbonne-Nouvelle, foi diretora da Fundação Bergmancenter.