Literatura em língua portuguesa,

Um novo alvo

Publicado em 2020 em Portugal, ‘Flecha’, o segundo livro de Matilde Campilho, chega ao Brasil e inaugura as prosas contemplativas da escritora lusitana

28jun2022

Quando foi anunciada em Portugal a publicação de Flecha, o segundo livro de Matilde Campilho, os amantes brasileiros da sua prosa poética entraram em polvorosa. Ainda que em solo lusitano ela possa ser ouvida semanalmente em Pingue pongue, programa de rádio que divide com o multiartista Tomás Cunha Ferreira, por aqui, desde que publicou Jóquei, em 2015, pela Editora 34, foi possível acompanhar bem pouco do seu trabalho — reservada na vida pessoal, ela concede poucas entrevistas e atualiza raramente suas redes sociais. 


Flecha, de Matilde Campilho

Mas quem espera encontrar os mesmos textos velozes e ritmados de Jóquei terá um agradável espanto em Flecha. “Passaram quase dez anos e, portanto, existe um vão grande entre um tempo e outro. A verdade é que não escrevo poesia há muitos anos. Flecha é um livro em prosa, de histórias curtas. Posso, sim, ter herdado do tempo da poesia uma forma de atenção específica ao detalhe imóvel. Mas este é realmente um livro em prosa, com um ritmo específico da prosa, uma possibilidade de alongamento das cenas que é muito mais característica da prosa do que da poesia. As histórias da Flecha, que se aproximam mais dos chamados microcontos, estão relacionadas com o momento concreto, muitas vezes quase parado no tempo”, diz Campilho em entrevista à Quatro Cinco Um.

Para ler em voz alta

As histórias são um verdadeiro diário de contemplação escrito por alguém que observa o mundo em silêncio — dá para perceber que Campilho evoluiu para um novo estilo, agora mais roteirizado, com mais estrutura, mas ainda reflexivo, que nos faz querer parar ao final de cada conto, suspirar e lê-lo de novo em voz alta. O que, aliás, é recomendado que se faça devido à inserção de uma espécie de glossário imagético e vocabular na edição brasileira de Flecha. “Decidimos acrescentar uma seção de ilustrações, assim como uma de ‘pistas’. O livro foi publicado em Portugal em julho de 2020, sendo que terminei de o escrever em janeiro daquele mesmo ano. Portanto, desde essa época, tive tempo para pensar nele com mais clareza. Essas duas novas seções, de alguma maneira, sempre fizeram parte de Flecha. Estavam em anotações, em imagens que acompanharam o trabalho do livro desde o princípio. A seção das ilustrações consiste num apanhado de representações imagéticas: de pinturas, fotografias e até objetos a partir dos quais trabalhei certas histórias. Já a seção das pistas procura fazer o mesmo, mas por via da palavra. Tanto as ilustrações como as pistas são apenas um apanhado: não entraram todas, porque existem muitos contos feitos a partir de situações reais, ou de histórias contadas por outros. Isso não é uma novidade na literatura, que é quase toda feita a partir da literatura prévia”, diz. 

Se você não conhecer alguma palavra ou perder as inúmeras referências contidas em Flecha, procure ali, na seção de pistas e releia os contos com nova compreensão, sabendo, agora, de onde vieram as histórias. Nelas, estão desde a imagem de uma foto da cantora, poeta e compositora inglesa Molly Drake (1915-93) até a do mural da Villa dei Dioscuri, em Pompeia (Itália), com Medeia e seus filhos, e Trago, o pedagogo. 

Por ser um livro de contos, os personagens são mais palpáveis. Campilho traz para a sua escrita figuras contemporâneas e de tempos passados. Carmen Miranda coroada de frutas, Leonardo Da Vinci na apreensão da forma da água, Esopo e suas fábulas, uma menina com o raio de David Bowie desenhado no rosto, Beethoven com um zumbido no ouvido direito, um pássaro que canta alto ou até um baobá. Pessoas, bichos e plantas se fundem numa fantasia que parece bastante real. 

É um livro de travessia, escrito por alguém que ama contar e também ouvir as histórias

“Assim, existem instantes retirados da Bíblia, de Moby Dick, de Gilgamesh, ou de Homero etc. Misturo histórias clássicas com gestos contemporâneos, propositadamente. E mesmo as histórias que criei de raiz não nascem sozinhas. A imaginação, a possibilidade da ficção que pode sempre atravessar o real, interessa-me muito. A liberdade que reside intocável no ato de contar uma história, é também isso que trabalho neste livro.”

Flecha também caminha pelo mundo: Olinda, Cabo Polônio, São Petersburgo, o deserto da Califórnia, entre outros, são lugares por onde passa a narrativa de Campilho.

Retratos vivos

E, como sempre, são textos ligados com algum tipo de arte. “Se no livro anterior fiz uma poesia que estava ligada à música, neste acontece uma prosa ligada à pintura e à fotografia. Foi um trabalho pensado desde o princípio para ser assim, feito de ‘retratos vivos’ — pequenas histórias de instantes aparentemente indiferentes e quietos. A relevância desses instantes reside precisamente no fato de todos estarem dotados de vida. Essa é muitas vezes a característica da imagem fixa: uma pintura, conforme o dia em que é olhada, ou conforme o observador, muda. O movimento dentro daquilo que aparenta estar quieto.” 

Acima de qualquer coisa, Flecha é um livro de travessia, escrito por alguém que ama contar e também ouvir as histórias. “O contar das histórias sempre esteve entre nós: é uma das formas mais interessantes de passar conhecimento e de fazer comunidade. Interessante porque aberta. Porque não agressiva. Porque constantemente capaz de se reinventar e crescer. As histórias são ao mesmo tempo capazes de abolir o tempo e de o estender. Existe um número infinito delas no mundo — são contadas em casa, de pais para filhos e de filhos para pais, são contadas de avós para netos, são contadas na pintura, na fotografia, na inscrição feita num pote, num gesto. Este livro que fiz conta só mais algumas. Umas são recontadas, porque as escutei e quis fixá-las, ou quis até brincar com elas e apresentá-las diferentes. Outras são aparentemente novas. Seja como for, são só pontos num mapa que está sempre em construção. Há histórias antes e histórias depois. Daí o nome Flecha: uma que as atravessa.”

O especial Livros que falam a nossa língua tem o apoio de Portugal – País convidado da Bienal Internacional do Livro de São Paulo 2022

Quem escreveu esse texto

Olivia Nicoletti

É autora dos contos de Endereço (Patuá).